LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O começo perfeito


"O chefe da repartição me disse: 'Fique sabendo que o vou mantendo entre nós unicamente em respeito a seu venerável pai. Não fosse isso, há muito que já teria voado daqui para fora'. Eu lhe respondi: 'Faz-me uma grande honra, Vossa Excelência, ao supor que sou capaz de voar'. Em seguida, ouvi-o exclamar; 'Levem embora este homem, ele me acaba com os nervos'."

Este é o começo perfeito do livro Minha vida, de Tchekov (trad. de José Pereira Júnior; São Paulo: Nova Alexandria, 2004, p. 7). Aliás, este autor é realmente incomparável, para se ler de joelhos e se contemplar com um suspiro - já que é tão parecido com meu tzarievitch!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Escrita e fotografia - pelo mágico Oz

"Talvez seja assim: você escreve sobre eles como um fotógrafos dos tempos das fotografias sépia, um fotógrafo de reuniões familiares. Anda de um lado para outro entre os figurantes, bate um papo com todos, faz amizades, graceja, pede que finalmente se arrumem em seus lugares, vai e planta seus personagens em semicírculo, como um anfiteatro, com os mais altos de pé, aos pés deles você senta os mais baixos e as mulheres e as crianças, estreita os espaços entre eles, junta cabeça com cabeça, passa duas-três vezes entre as fileiras e com um leve toque endireita aqui e ali um colarinho, a fralda de uma camisa, dobras de mangas, fitas de tranças, e volta para trás de sua câmera apoiada num tripé, enfia sua cabeça embaixo do pano preto, fecha um olho, conta em voz alta até três, finalmente aperta o disparador e com isso faz todos virarem assombrações.
(...)
"Ele se enche de vergonha e de constrangimento por olhar para todos de longe, de lado, como se todos só existissem para que deles fizesse uso em suas histórias. E com essa vergonha vem também uma angustiante aflição por sua estranheza constante, por sua incapacidade de tocar e ser tocado, por estar sua cabeça, durante todos os dias de sua vida, enfiada no pano preto da velha máquina fotográfica."
(OZ, Amós. Rimas da vida e da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp.90-1)

Todo leitor é virtual

Pediram-me que escrevesse um blog, e eu a princípio tanto relutei. Porque, antes de tudo, tenho o meu caderno-diário, que não estou disposta a transferir para o meio digital devido a muitas razões: comodidade, sentimentalismo e, acima de qualquer coisa, respeito ao gênero. Óbvio: diário não é objeto público nem volátil. É a via de escapatória sem limites exatamente por não ter leitores, ou por alimentar ilusões de estar preservado do olhar alheio - requisitos que às vezes se rompem, embora o usual seja o segredo, o mistério e a completa privacidade, nesse território tão íntimo.
Quando me explicaram que blog hoje é algo muito mais híbrido, espaço de idéias, citações, dicas e besteirinhas, respirei: se for assim... Mas ainda me incomodava a sensação de estar sendo espionada - o acesso em qualquer tela, pelo internauta anônimo: há uma certa promiscuidade nisso, eu pensava. E sentia falta da gaveta onde pudesse trancar meu diário a chave, ainda que blog não fosse bem um diário.
Quebrei a última barreira quando um amigo me lançou a pergunta-desafio: e por acaso os leitores de seus livros não são também desconhecidos, em sua maioria? Não folheiam o que você narra com o mesmo ímpeto curioso de um espião ou voyeur? Por que escrever numa página virtual agravaria essa condição? Todos os leitores são virtuais.
Pois é, concordei. E criei este "cantinho abstrato", um lugar para o exercício de muitas coisas, quem sabe. Batizei-o de "Livros e Bichos" para que me soe concreto e afetuoso, já que começa agora outra estranha sensação - a de que também eu me virtualizo e dissolvo um pouco neta página.