LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Para começar o ano...






Dizem que a gente deve começar o ano de branco. Como sou apressadinha, antes mesmo do réveillon faço esta postagem com a foto do Odelir, o novo bichano da amigata Carmélia. O rapaz não somente é alvo-leite, mas tem olhos bicolores que são um charme!
Aproveito para lembrar a todos que mantenham seus bichinhos a salvo dos sustos dos fogos de artifício. Não deixem abertas janelas sem rede de proteção!
Até 2011!

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Chagall, o aventureiro


Chagall também era um aventureiro tímido - cheguei a essa conclusão ontem. Sinal disso são seus personagens etéreos e voláteis, com delicadeza de pintura que parece bordado.
As fantasias de Chagall eram o seu modo de se aventurar. E que delícia não precisar fazer sentido! Que maravilha, ser irracional! A arte serve para a gente se exercitar nesse tipo de coisa... E, falando em arte, explico porque pensei no Chagall ontem. É que estava vendo um programa com o Gullar, e ele em determinado momento recitou: "Ver pode ser uma azulcinação". Imediatamente lembrei o quadro acima, dentre vários do azul e do céu chagallino.
Gullar também disse algo que, para mim, encerra definitivamente a velha polêmica que pulsa sob aquela pergunta "Para que serve a arte?". Eis a sabedoria do poeta:
Os homens são iguais em direito, mas não em qualidade.
Eis porque a arte existe, mas jamais existirá para todos. Quem declara o contrário é um ingênuo retórico.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Histórias de leitores

A relação de um autor com aqueles que o leem é algo mítico. Eu, por exemplo, nunca acreditei inteiramente que houvesse alguém “depois” do meu texto, alguém que o manipulasse e interpretasse. Tinha a impressão de que minhas palavras permaneceriam solitárias, mesmo que fossem publicadas. Entretanto, às vezes surgem os leitores, confessos e expostos. Através de mensagens eletrônicas, eles se apresentam, quase sempre de maneira tão agradável que me constranjo por ter duvidado de sua existência.

Agora, nesse período de final de ano, recebi alguns pedidos para uma crônica natalina. Infelizmente, não vou cumprir a solicitação – primeiro, porque não tenho talento para falar desses assuntos, ditos “da hora”, e depois... bem, acho que é minha obrigação manter a liberdade temática, ao menos para lançar uma pitada de surpresa. Porém, não quero que os tais leitores-correspondentes se sintam rejeitados. Ao contrário, desejo homenageá-los, contando algumas de suas histórias.

Muitos dos que me mandam mensagens têm pendor confessional. Motivados pelo argumento do texto que leram, ou por outra inspiração particular, não resistem ao impulso de contar fatos íntimos e singulares. Eu, é claro, adoro! E lembro com especial delícia certos episódios que assim me foram narrados...

Há o caso de um rapaz que me escreveu do hospital onde se recuperava, após um acidente. O setor de traumatologia não era novidade para ele, segundo me informou: tinha pinos e placas metálicas por todo o corpo, e não havia parte que ele já não tivesse fraturado – exceto, talvez, o pescoço. O que ele no início considerou um infortúnio transformou-se em estilo de vida. Envolver-se em acidentes era um hábito que lhe dava a propriedade de fazê-lo mais corajoso.

Uma jovem, meses atrás, me passou uma mensagem poética, dizendo que gostava de ler minhas crônicas pela manhã, enquanto ouvia o galo cantar na vizinhança. Dizia ser aquele um privilégio raro, numa cidade tão agitada quanto Fortaleza. Achei tudo muito bonito e a parabenizei; não suspeitava que semanas depois ela me escreveria novamente, para desabafar sua revolta. Pois encontrara a vizinha do tal quintal bucólico e, ao conversar sobre a atmosfera pacata que o canto do galo criava, descobriu que o som era apenas uma gravação em disco. Um médico o recomendara à vizinha, para lhe acalmar os nervos...

Recordo ainda a história do homem que, traído pela esposa, resolve terminar o casamento. Como símbolo de sua raiva, engole a aliança, com o objetivo de depois deixar na casa da ex “uma certa encomenda” que seu organismo produziria. Lá entregaria o pacote, decentemente vedado – e, quando aberto, primeiro se veria um bilhete, com a inscrição: “Aqui dentro está minha aliança, no lugar para onde foi o nosso amor”. Mas a performance escatológica não chegou a acontecer: o criativo esposo morreu após longo sofrimento, vítima de obstrução intestinal. Quem me escreveu sobre isso foi sua filha, um verdadeiro talento no humor negro...


Tércia Montenegro (crônica publicada hoje na coluna Opinião do jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/12/22/noticiaopiniaojornal,2081000/historias-de-leitores.shtml)

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Sono da beleza


Imagem da linda Passonda dando-se ao trabalho de olhar para a câmera, em pleno horário vespertino...

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Prêmio Ideal Clube


Não posso deixar de compartilhar minha alegria de ontem à noite: fui premiada pelo Ideal Clube, pelo meu livro inédito O lado imóvel!
A notícia está no Vida & Arte de hoje: http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2010/12/17/noticiavidaeartejornal,2079109/literatura-ideal-clube-premia-tercia-montenegro.shtml

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Entrevista na rádio Unesp FM

Recentemente, concedi entrevista via telefone para o Oscar D'Ambrosio, da Rádio Unesp FM. Ela se encontra disponível em mp3 no seguinte endereço eletrônico: http://aci.reitoria.unesp.br/radio/perfil_literario/
O número da entrevista é o 1007.
O endereço traz várias outras gravações com muita gente interessante, que eu admiro demais. É certamente um espaço que estarei sempre visitando...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Bilan de l'année



Continuo literariamente por terras dublinenses, cada vez mais convencida de que Joyce foi um gênio. Assim é quem inaugura um estilo; quem copia é mero oportunista.
Antes mesmo do Natal, vem-me o impulso de fazer uma retrospectiva do ano, dentro dessa convenção de calendário que nos foi imposta pelo Ocidente. Os pontos positivos (só eles me interessam) nessa etapa da jornada foram:
1) A viagem por Veneza e Florença. Ainda agora preparo uma apresentação para amanhã, na aula de italiano, e viajo de volta às máscaras típicas. Il carnevale - ah! Fantasias, plumas e dourados, água sob gôndolas, vinho e cafés, vidro de Murano, rosas e pombos na piazza San Marco: isso foi Veneza para mim.
2) As leituras e as pesquisas. Lógico que aqui cabe um mea culpa, porque não rendi o suficiente - especialmente com o projeto do Lobo Antunes. Mas em 2011 não terei as mesmas desculpas. Creio que estarei enfim adaptada ao meu novo ritmo, à nova casa e aos novos interesses (que, afinal, são revisitações de antigos impulsos).
3) Os esportes. Eu, que sempre tive talento para a preguiça, desta vez me corrigi. Não o tempo todo, é claro; mas na maior parte das semanas do ano consegui comparecer à natação e à ioga. O resultado foi claríssimo na saúde. Para o ano que vem, tenho outros projetos, mais audaciosos...
4) A escrita. Se não avancei muito no prometido romance, por outro lado fico satisfeita ao ver meus livros e artigos publicados em 2010. As crônicas para o jornal inauguram uma fase que me interessa - e o mais importante: consigo separar as estruturas dos gêneros com maior técnica, consciência. Em outras palavras, o fato de escrever novamente textos curtos não me "bloqueará" para as tentativas com o romance...

De resoluções para o novo ano (além dos esportes que planejo e ainda mantenho em mistério por enquanto), estão: escrita, leitura, escrita, leitura; maior tempo para os amigos e a apreciação de artes; viagens, agendadas ou não; fotografias, longas tardes na rede, em companhia dos meus gatos; peace and love; distância radical de loucos e problemáticos; minimização extrema de atos burocráticos e maximização da alegria e do terrorismo-pelo-riso!

domingo, 12 de dezembro de 2010

Ombro amigo


Este charmosão é um dos bichanos da Sybelle, que eu não conheço, mas é amiga da querida Carmelíssima. Sendo gatófila como nós, ela concordou em ceder a foto, para embelezar este blog. Merci!
Em tempo: quem nunca andou com um gato assim na nuca (no estilo papagaio de pirata) não sabe o que significa aconchego...

sábado, 11 de dezembro de 2010

Herta e Andrei



Após ler A morte de um estranho, fiquei com a sensação de familiaridade ligando este autor ucraniano, Andrei Kurkov, à escritora romena Herta Müller. É claro que Herta foi uma revelação arrepiante para mim (e ainda estou "economizando" os livros dela, que comprei recentemente), ao passo que Kurkov é tão simples, e parece tão fácil, e até mesmo pouco inspirado, em termos de imagens literárias! Não desmereço seu texto; inclusive, já vou encomendar outro romance seu, Piquenique no gelo. Apenas prefiro a estranheza e abundância sensorial da Herta.
O que, então, me fez pensar em proximidade entre os dois? Talvez a questão política? É possível. Ambos escrevem sob (e sobre) uma atmosfera de perseguição, vigilância - e este é um tema que me toca ao extremo. Mas Herta é expressionista, e Kurkov traz um sabor de nouveau roman, com seus pequenos acontecimentos, seu gosto pelo anticlímax (embora o final de A morte... seja perfeito e refrescante!). E há a impressão de que os personagens, apesar de subjugados pela ditadura (cada qual em seu contexto), vivem numa incrível liberdade interior. Essa liberdade às vezes parece apática, às vezes infantil e insana, num tipo de não-pensamento ou alienação - mas assim mesmo é uma liberdade, um ato de rebeldia.
Esse veio temático tem uma força magnética sobre mim, principalmente quando penso que, ao final, todos vivemos sob algum tipo de coerção. Quando se instaura um elemento político nesse sentido, ele parece evidente; entretanto, se estamos numa aparente "abertura" de ideias e comportamentos, as opressões se tornam mascaradas, difíceis de serem percebidas. No entanto, elas estão sempre lá, na forma de uma expectativa social, de uma obrigatoriedade qualquer, de um compromisso imposto sabe-se lá por quem ou por qual ideologia... E por que somos impelidos a seguir essas regras?
É sempre bom refletir sobre os limites, para ver se vale a pena ultrapassá-los. Não é rebeldia pela rebeldia - que fique bem claro. É mais aquilo que certa vez ouvi Eugenio Barba dizer: "Eu escolhi a ficção". A ficção é sempre livre e, em certa medida, fora do normal.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Notas da aventureira tímida - III

Ninguém descobriu que escalei as águas de um chafariz em Brasília. Pior: houve quem me dissesse, na cara, que eu estava mentindo, quando confessei a proeza. Mas não existe nada mais fácil que fazer alpinismo em líquidos. Basta se aproximar da fonte dos jatos, pular sobre a válvula projetora com os dois pés bem unidos e - pronto! Entra-se no "olho" da água, no véu que sobe como um raio branco. Uma vez no alto, é preciso um tantinho de equilíbrio para não despencar logo, mas rápido se aprende a dança necessária (quem já fez hidromassagem, via de regra, conhece o manejo). Ficar no topo é o momento mais belo, pela paisagem, e também porque não há risco de a aventura ser descoberta: normalmente, a polícia não permite que se entre em chafarizes públicos, mas os guardas só apitam quando veem alguém dentro do tanque; nenhum jamais teve a ideia de olhar para cima.
A descida não é tão suave quanto parece: há lapsos de água no trajeto, mais ou menos no feitio dos lapsos de chão que se experimenta ao descer por um tobogã. O mergulho, porém, é tranquilo; a gente cai no meio dos vapores de água que, ao redor, cria semicírculos de borrifo. Parece que se entra num algodão-doce, com a diferença de que é bem mais frio e muito menos grudento...

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sobre relatórios e artes

Impressionante como as filas de banco são o palco da vida alheia! Parece que quanto mais fazemos cara antipática, mais nos tornamos ouvintes passivos. Não existe fumante passivo? Pois ouvinte passivo é aquele que ouve sem querer, porque afinal seria deseducado pôr as mãos sobre as orelhas. Entretanto, os assuntos algumas vezes são mais intragáveis que fumaça, quando não beiram o absurdo.

Naquela tarde, duas jovens à minha frente – após trocarem ideias sobre alisamento de cabelo e choque de queratina – passaram a falar de amor. A primeira, uma gordinha de rosa-choque, suspirou quando disse que ia completar um mês de namoro no dia 10. A outra invejou a sorte da companheira; falou que nos últimos tempos estava só “ficando”, e então a gordinha, talvez para atiçar o desgosto da amiga, revelou a surpresa que estava preparando para o amado:

– Eu fiz um relatório de cada dia do nosso namoro...

Não pude deixar de prestar atenção, afrontando as regras de privacidade de fila: arregalei os olhos como quem quer abrir mais os ouvidos. Felizmente, não fui percebida. Ela continuava:

– Para cada dia, contei o que tinha acontecido, se eu tinha telefonado para ele, se ele tinha me telefonado, o que nós conversamos. Se houve dia em que a gente não se falou, eu coloquei também...

Ninguém mais ao redor percebia a gravidade da situação: uma namorada tecia atas, descrições do comportamento de um rapaz, algo próximo de um arquivo de alta espionagem – e chamava isso de prova de amor.

– Assim, ele vai ver que estive sempre pensando nele, e vai adorar!

Tive que virar de costas, para não ver a cara de hipocrisia da outra garota (não podia ser que ela estivesse sinceramente invejando aquela criatividade!). Daí em diante, as duas amigas mudaram de assunto, mas eu fiquei mordida pela imaginação, pensando no pobre rapaz, na sua cara de susto quando abrisse o tal relatório.
Se ele tivesse um mínimo de juízo, pensaria: essa minha namorada é louca, não tem o que fazer, concentrou toda a vida em mim, e em apenas 30 dias analisa os meus atos milimetricamente – vou cair fora já!

Entretanto, outro dia li a declaração de um artista, que disse compor suas obras para vencer o tempo e ter a ilusão de que a existência podia ser traduzível. De repente, pensei se a gordinha de rosa-choque não agia assim. O relatório era uma forma de reviver cada dia do namoro, traduzindo a vida dos dois, ou a vida dela sob a presença dele, a importância dele. Vendo dessa maneira, ficava aceitável e até mesmo bonito. Mas isso dependia de eu estar pensando na situação em horário próximo ao da meia-noite, sob o luar. Naquela tarde, em plena fila de banco, realmente não me pareceu que um diário de namoro tivesse proximidade com as artes...

Tércia Montenegro (crônica publicada em 08/12/2010, no jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/12/08/noticiaopiniaojornal,2075081/sobre-relatorios-e-artes.shtml)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ficar e partir

Texto do amigo, poeta e viajante Henrique Beltrão:

De mãos bem dadas, as almas são aladas. Falar de encontros e despedidas, chegando de Paris, onde ficou meu filho, e aportando em Nantes, nos braços da amada, me faz esboçar estas linhas e entrelinhas pensando em histórias irmanadas com a minha, vividas pelos leitores e leitoras – de poesia, de cartas, de relatos de viagem...


O homem habita a Terra prosaicamente e poeticamente ao mesmo tempo, diz Edgar Morin. E enquanto ela cumpre seu trajeto imerso no Universo, tanta gente de passagem! Viagem e viajante compõem a mesma paisagem: o viajante é a sua viagem. Sinto saudades do Brasil, das minhas amigas e dos meus amigos. A saudade é uma esperança pelo avesso. A saudade é a gente continuando, uns nos outros. Ela faz samba, faz versos, faz romance a cada novo abraço ou despedida. Cada encontro tem um grão de partida. Cada partida é grávida de reencontro.


Não na praia, mas em alto-mar, em noite de tempestade, se conhecem o mestre de jangada e os pescadores que vão com ele. Na beira da espuma, tanta espera a cada onda que vai e vem, tanta modinha cantada, chamando pelo seu bem. O amor entre as pessoas faz curvas no tempo e no espaço: gente que se ama, amigos e amigas têm entre si carinho impalpável e silêncios musicais; onde quer que estejam, permanecem juntos.


Tão longe estando, em meio a um outono gelado, me alcança a presença da minha gente ensolarada, em um convite para escrever, em um telefonema inesperado, em uma mensagem tão terna na tela do computador... Não estando ao alcance dos seus braços, resta-me o que desde sempre me resta, o fio das linhas com que componho minha breve passagem neste mundão que nos abraça.


Ah, refúgio meu, reino da Palavra, terra atemporal, momento sem lugar, aqui e agora sou todo teu. Fazei de mim o instrumento de vossa melodia que desafia os dias... E no momento mesmo em que a noite me açoite, onde houver silêncio que eu leve um grão de Poesia, magrinha talvez, alivia essa agonia sem perdão – de se saber de passagem na imensidão.


Foi-se com o tempo a lucidez de minha sanfoneira e pianista, grávida de mim um dia; foi-se com o tempo a visão de meu mestre poliglota, senhor dos genes de mim que já havia; foi-se a música com que ela me animava, foi-se a leitura com que ele me acalentava; foi-se tudo com a foice do pêndulo que oscila e garimpa a ilusão que vacila frente à incógnita adiante...


E assim contemplo os mapas e o calendário, a ampulheta e o metrônomo em coro a reger a fluidez sem fim em que escoo e ecoo meus versos avessos à sombra, vermelhos e tão simples, mas amigos da luz. Não serei eu um intruso de passagem, nas tripas do tempo plantado, teimando em continuar nas parcas linhas que o passado abrigou, que o presente acolhe e o futuro adivinha? Mas não sou o único – estou em boa companhia, a cada abraço ou aceno nosso, plenos de poesia – a poesia dos encontros e despedidas.


Nada pedir, nada esperar – tudo acolher, agradecer e passar. Sabedoria intangível, dirão vocês, eu sei, eu pressinto. Eu sinto que estas poucas sílabas são sinos a soar sem ciência do que será. Queiram me perdoar, eu preciso de falar. São as palavras meu abrigo; são vocês, leitores amigos, os destinatários destas correspondências que hão de se apagar, contudo a ecoar, a ecoar, a ecoar...



HENRIQUE BELTRÃO é poeta, radialista, professor da UFC. Autor de Vermelho e Simples; produtor e apresentador do Sem Fronteiras: Plural pela Paz e do Todos os Sentidos – Rádio Universitária FM.

Texto publicado no jornal O Povo e disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/vida-e-arte/2010/12/04/noticiavidaeartejornal,2073868/ficar-e-partir.shtml

domingo, 5 de dezembro de 2010

Reflexões

Cheguei a uma fase da vida em que sinto que todos estão igualmente perdidos, tentando achar uma forma ideal para levar a existência. Criam-se modelos, manuais, historietas com fundo moral, mas em realidade as pessoas continuam desesperadamente inseguras, à procura de verdades - sejam elas traduzidas pela rotina, por um projeto específico, pela ambição ou o que quer que seja. Ao final, uma certeza se consolida: a de que impera o acaso, e a distância entre o poder e a simplicidade não é muita. O que transforma alguém num indivíduo arrogante não é o dinheiro ou a fama, mas simplesmente o seu caráter. Contra a infelicidade, não há grandes remédios. Quem consegue ensinar alegria a um típico ranzinza? E quem convence um sério teimoso de que a vida é uma doce piada?

Notas da aventureira tímida - II


Depois de ler Verão em Baden-Baden, estabeleci uma ligação entre Rússia e Alemanha que talvez, antes, só estivesse sutilmente sugerida em minhas intenções, pelo desejo de estudar as respectivas línguas. O impulso pelo russo e pelo alemão surgiu quase ao mesmo tempo, aliás, embora o meu encanto pelo primeiro remonte à época de minha graduação (quando eu passava em frente à Casa de Cultura Russa só para contemplar a fileirinha de matrioskas que ali ficavam, como anões de jardim). Eu então sentia uma espécie de antipatia pela língua alemã, mas isso mudou quando finalmente conheci Mann, e depois mudou mais ainda, quando conheci o amado e ouvi dele um "Ich liebe dich" maravilhoso... Agora, os planos para breve (?) envolvem estes cursos de língua - e, claro, estas possíveis viagens.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Festival de Performances Espontâneas

Estão abertas as inscrições para o Festival de Performances Espontâneas! Para participar, basta ter a sorte de ser clicado pela dupla Paiva & Montenegro, nos próximos dias. A motivação para a fotografia partirá da identificação de situações performáticas interessantes, ridículas ou obscuras, no território de nossa cidade. Os vencedores ganharão o prestígio de terem suas imagens postadas neste e em outros blogs, embora na maioria das vezes o anonimato seja preservado, para o bem da paz mundial. São muitas categorias de participação! Fique atento(a) - e comece a dar bobeira por aí!

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Notas da aventureira tímida

Para desautomatizar, descobri como é bom, por exemplo, comer a sobremesa antes do almoço. Este é, inclusive, um benéfico costume da antiga nobreza polinésia, que aprendeu a digerir açúcares muito mais rapidamente que qualquer outro grupo de pessoas no planeta.
E hoje, depois de ter pintado as unhas dos pés de roxo vívido, devo acordar de madrugada para espreitar os silêncios. Vou construir asas com as penas do travesseiro para ter a sensação de planar, em corridinhas aos círculos, na cobertura de meu prédio. É ali que os parangolés se renovam, nos varais coloridos, com as roupas de toda a vizinhança. Um edredom desgarrado certa vez voou: ficou em pose alcochoada, sobre o teto de zinco da garagem, antes de se deixar levar pelo vento. Vive agora ao redor do corpo de um mendigo, que o leva para a calçada, nas noites frias.

Do diário de bordo da viagem

Pinço estes fragmentos do diário de bordo da viagem a Brasília, quando acompanhei alguns filmes exibidos no festival de cinema:

Dia 25
[sobre o filme Transeuntes, de Eryk Rocha]

O grande aspecto deste filme é a fotografia, sempre com um zoom poderoso, que se detém na textura e geometria dos rostos, sobretudo os envelhecidos. O PB ressalta a saturação, e o hiperrealismo das imagens tem sua violência suavizada pelo ritmo lento da maior parte das ações. Dois pontos altos: a figura do profeta num apocalíptico otimismo, com performance e feitio que lembraram o próprio Glauber (Terra em transe e Transeuntes são, afinal, da mesma lavra) e a cena no ossário da catedral do Rio de Janeiro.

Dia 26

Vi uns curtas muito ruins hoje, mas, em compensação, Braxília, sobre o Nicolas, foi ótimo. Agora, o longa da noite, Os residentes, mais parecia um conjunto de performances do que um filme. Sempre acho videoarte uma coisa monótona, e dessa vez a sensação não foi diferente. Houve uma cena interessante, quando se cria um bigode feito com fios de pêlo pubiano de uma garota. O namorado dela, cheio de uma retórica "contra a vida normal", corta e monta os pêlos, após ter aparado o próprio bigode, no meio de uma briga que leva a essa "prova de amor". A garota então fixa em si mesma o bigode, que é falso, mas feito com seus pêlos autênticos: é um símbolo de uma masculinidade forjada. Entretanto, nem todas as performances são proveitosas. 90% talvez seja rebeldia inútil - e algumas não têm nem mesmo finalidade de causar o riso. São rupturas irresponsáveis, porque não sabem o que querem atingir. O estranho pelo estranho não significa nada.

Dia 27

Destaque para o belo e sugestivo "Últimos dias" e para "Traz outro amigo também" (um curta divertido, que mostra como se pode conciliar narrativa tradicional e criatividade).
Os filmes da noite não foram lá muito instigantes. O longa, "O céu sobre os ombros", teve uns momentos bons, mas no geral deu a impressão de um conjunto de fragmentos reunidos ao acaso. Por que será que os filmes atuais dão essa ideia, de gratuidade ou ausência de mensagem? Não procuro moral, mas me sinto confortável quando reconheço o tema de uma obra de arte... Sem isso, fica difícil interpretar e - até mesmo - apreciar.

Dia 28

Os filmes da noite foram razoavelmente bons, no estilo daqueles que deixam uma boa sensação mas em breve serão esquecidos - por isso, nem vale a pena citá-los. Eis porque a arte tem sempre que ultrapassar o nível das convenções ou das expectativas "normais" (mas isso não significa valer-se da rebeldia pela rebeldia)...

Dia 29

Manhã no hotel, lendo Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsípkin. Se Dostoiévski foi mesmo esse gênio perturbado, tenho pena da pobre Anna Grigoriévna. Para mim, não há talento que justifique uma loucura maldosa, ou vice-versa. Se o artista é inconvivível e assim quer se manter, por razões de impulso criador, tem a obrigação moral de isolar-se; não pode arrastar um(a) companheiro(a) às crueldades do seu humor. Nenhuma obra confere o perdão a isso.
O hotel é bastante agradável; escrevo sentada numa poltrona xadrez, sob um abajur elegante. Há pouco lia à beira da piscina (pena que esqueci o maiô). A paisagem do meu 13° andar é muito linda.
(...)
Penso que um festival de cinema é semelhante a um concurso literário: cerca de 80 a 90% são dispensáveis. O fato de ser uma arte muito mais trabalhosa e cara não inibe os medíocres; como eles são a regra, estarão sempre em todos os lugares, e em maior quantidade. Os criativos permanecem exceção - mas o cinema lembra que não é preciso somente uma ideia (ou história). É necessário manipular bem a técnica, a linguagem.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Os esquecidos

“São espantosas as coisas que as pessoas esquecem nos trens e nos vestiários”, dizia James Joyce. De fato, pude constatar essa verdade recentemente, quando fui encaminhada a um setor de achados e perdidos, em busca de um guarda-chuva que tinha deixado para trás. Ao ver meu espanto diante da imensa quantidade de objetos ali amontoados, o funcionário me brindou com uma visita ao setor.

Enquanto eu andava no meio de caixas e pacotes de diversos tamanhos, ouvia a relação de pertences comumente largados nas dependências do estabelecimento. Óculos, canetas, lanternas, livros, brinquedos, alianças, suspensórios, bolsas, chaves de carro ou vidrinhos com remédios eram itens triviais. Também – com maior raridade – apareciam perucas, suspensórios, gravatas ou dentaduras.

“Uma vez” – cochichou o funcionário – “encontraram um peixinho dentro de um aquário, no banheiro do museu.” Meu Deus! O que aconteceu? – perguntei, temerosa. Mas a história tinha final feliz. Durante semanas, a zeladora pensou que se tratasse de um mimo decorativo e tomou para si a tarefa de alimentar o peixe e trocar sua água. Quando enfim soube que o bichinho era um extravio, pensou em levá-lo para casa. Entretanto, como não podia carregar o aquário dentro do ônibus, resolveu mantê-lo no banheiro – com a permissão de um ofício expedido pela diretoria, é claro... Assim, ainda hoje o peixinho vive no museu.

Há autores que esquecem originais literários dentro de táxis (existe mesmo uma tradição nessa prática). E faz um tempo conheci um fotógrafo que perdeu um rolo de filmes preciosíssimo, conforme afirmava: eram imagens que o teriam lançado em ascensão mundial. Foi uma fatalidade, comentei – mas também podia ser uma mentira. Atribuir um valor absurdo a uma obra perdida não parece difícil, visto que a comprovação do talento (ou da falta dele) torna-se inviável. Quem irá, portanto, contradizer o orgulho do artista?

À parte esses casos, conheço gente sinceramente distraída, capaz de esquecer diplomas ou passaporte em assentos de cinema. O tipo de pessoa que perde bilhetes de amor não por desprezo, e deixa cair dinheiro dos bolsos, de preferência em escadarias de repartições públicas. Todos esses desatentos desenvolvem um traço peculiar: quando abordados ou advertidos por quem lhes encontra o objeto, nunca agradecem.

Na verdade, a reação não é grosseria. O distraído é um ingênuo: nem percebeu a perda, não passou pela angústia do vazio, com a memória refazendo percursos e possibilidades de ter deixado o utensílio aqui ou ali. Desfez-se daquilo como quem lança fora uma casca que já não serve – e, de certa maneira, esse desapego (embora às vezes traga consequências catastróficas ou, no mínimo, pouco práticas) é uma lição de leveza. Afinal, para caminhar bem pela vida é preciso carregar somente a bagagem essencial. E quem saberá realmente o que é ou não indispensável?


Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião do jornal O Povo, em 24/11/2010)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Festival de Cinema de Brasília


A partir de amanhã estarei em Brasília, na companhia de Ana e Nick, queridos amigos. O Festival de Cinema promete e, para curti-lo adequadamente, viajo com o máximo despojamento possível - ou seja: sem trambolhos eletrônicos. Longe do notebook, dependerei de lan houses e estarei semi-incomunicável por um tempinho. Assim, caros navegadores-leitores, este blog hibernará (mas não mais do já antes hibernou, e sem motivos anunciados). Prometo voltar com muitas novidades em filmes e também com fotos e ideias para histórias, quem sabe...
Se alguém puder na quarta-feira, dia 24, acessar o site do jornal O Povo, provavelmente lá encontrará uma crônica minha, na coluna Opinião. Aqui ela será postada com atraso.

De volta ao mar, Moacyr


Ontem faleceu Moacyr C. Lopes, autor cearense radicado no Rio, famoso pelo seu romance A ostra e o vento. Na última Bienal, tive a oportunidade de conhecê-lo, e sinto-me feliz por saber que ele pôde receber a homenagem que nossa revista, Para Mamíferos, lhe dedicou em sua segunda edição.
Certamente Moacyr ainda tinha muita história para nos contar - mas o que fazer, se o tempo é implacável? O consolo é que a literatura deixa alguns rastros...

domingo, 21 de novembro de 2010

Mister Punch


Sobre minhas leituras de ontem, anunciadas aqui, devo dizer que a HQ Elvis decepcionou: é tosca, superficial e mal traduzida em muitos momentos. Em compensação, Mr. Punch é uma obra primorosa: o maravilhoso roteiro de Neil Gaiman me fez mergulhar nessa tradição de marionetes que vem da época vitoriana (o tal Mr. Punch é inspirado na commedia dell'arte, no polichinelo - e isso me lembra que já, já tenho de estudar italiano, para a aula de amanhã...). As ilustrações de Dave McKeath são lindas e criativas; fazem do álbum uma verdadeira exposição de arte!

sábado, 20 de novembro de 2010

Bons motivos



Hoje eu tinha uma boa razão para sair à noite, mas em compensação tenho vários motivos para ficar em casa. Primeiro, aqui estão, ao meu lado, dois convites para uma leitura que farei em breve: as HQs Elvis e Mr. Punch - uma ótima pedida para selar um sábado que começou bem, com a aula na Oficina de Quadrinhos (e novamente, senti a experiência de molhar os dedos nesse território de pesquisa, onde um dia mergulharei com profundidade). Depois, tenho também à espera algumas atrações musicais. Ontem o amado me presenteou com o Clube da Esquina, pensando na trilha mais adequada para a preparação de uma viagem que em breve farei: pela primeira vez, BH! Creio que não conhecerei nem um grama da riqueza mineira - mas isso será um aquecimento para o ano que vem, quiçá (e eu também não podia deixar de receber o prêmio do Governo de Minas pessoalmente: os organizadores foram tão gentis e solícitos!)...
Além das melodias de Milton e Lô, tenho ainda duas novidades que recebi em correspondência do meu precioso amigo Moa: Roberta Sá e Mariana Aydar. Na mesma encomenda-surpresa, ganhei O livro das pequenas infidelidades, de Edgar Telles Ribeiro, e Hóspede secreto, de Miguel Sanches Neto: são contos que devem me acompanhar nos hiatos dessa viagem - sim, pois não viajo com notebook, mas sem livros não consigo jamais embarcar.
Agora, chega de planos: vou dar início à minha noite-aconchego. Preparo uma rede na varanda, convido os bichanos para perto e... voilà! Isso é felicidade.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Palestra sobre Rachel

Palestra
Amanhã, (dia 20 de novembro) às 14h
Tema: Centenário Rachel de Queiroz
Palestrantes: Fernanda Coutinho & Tércia Montenegro
Unidade: Shopping Varanda Mall
Endereço: Av. Dom Luís, 1010 - Meireles - Fortaleza/CE
Local: Auditório


Neste sábado, a Livraria Cultura celebrará o centenário da autora Rachel de Queiroz trazendo as autoras cearenses Fernanda Coutinho, autora de 'Rachel de Queiroz: uma escrita no tempo', e Tércia Montenegro, autora de 'Rachel: o mundo por escrito', para dialogarem sobre a influência da autora e das suas obras na literatura brasileira e cearense. O encontro será mediado por Regina Ribeiro, editora da Fundação Demócrito Rocha.

Fonte: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/eventos/resenha.asp?nevento=19938&sid=71823522112826496609052346&k5=1C7DEFF6&uid=

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O que fazer com um bom vinho


Recebi esta imagem pela internet; infelizmente, não tenho como fornecer os créditos ao fotógrafo incrível, que capturou o tal instante decisivo. Aos meus leitores, fica esta dica, sobre como se divertir depois que é aberta uma garrafa de vinho...KKK

sábado, 13 de novembro de 2010

O idiota - uma novela teatral


Um espetáculo que promete ser maravilhoso: O idiota, da Mundana Companhia. Estreia neste domingo, às 18h, no Teatro José de Alencar. A peça terá 7 horas de duração, com dois intervalos, e vai circular por vários espaços do teatro. E na quarta-feira, dia 17, às 15h, estarei lá, debatendo no foyer do TJA - juntamente com a professora de russo da USP, Elena Vassina - sobre a obra de Dostoiévski. O tema da nossa conversa vai ser: Dostoiévski, contemporâneo de ninguém. Oportunidade incrível para mergulhar mais uma vez no encantador e trágico universo eslavo...

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Belezuras










A pedido dos meus leitores gatófilos, que andaram reclamando da ausência prolongada, neste blog, de fotos de charmosos felinos, coloco esta imagem, com quatro filhotinhos lindos!

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Violência no muro

Existem muitas formas de expressar ódio ou rancor, desde o simples berro solitário até o ataque físico ou verbal. Ora, a escrita também vira suporte para as emoções do violento. É possível aliviar-se de maus sentimentos pelo desabafo gráfico, pondo em letra verdades cruas ou infâmias consoladoras.

Foi nessa catarse que pensei, quando semanas atrás encontrei um muro transformado pelo ódio escrito. Ali estavam ofensas contra determinado indivíduo, citado nominalmente. Os desenhos e frases, cheios da escatologia mais criativa que se possa imaginar, adotavam o formato de um recado ou bilhete, trazendo uma espécie de assinatura sugestiva. O pseudônimo usado era “O teu pesadelo”.

Para mim, mergulhada num tráfego em paralisia, a experiência foi singular. A cada metro que o carro avançava, eu tinha um acréscimo na leitura daquela correspondência pública, pois o muro era longo e estava inteiramente preenchido com letras crispadas. Em determinado trecho, outra personagem – agora citada por nome feminino – também passava a ser xingada, e concluí que aquela era uma vingança amorosa.

O tal sujeito certamente tinha abandonado uma mulher para ficar com outra, e a rejeitada vingava-se com os desaforos na parede. Mas ali não se escrevera com tinta, que forma palavras líquidas e fáceis. O ódio da mulher foi cavado, no feitio de uma ameaça rupestre, de gesto tão violento como primitivo. Tanta má energia acumulada me deu um nervosismo, mas logo sosseguei, pensando no cão que ladra e não morde. Provavelmente o traidor sofreria apenas a humilhação pública; não seria morto e esquartejado, junto com sua amante – embora “o pesadelo” a certa altura prometesse isso.

Claro que não dá para se sentir seguro diante de sugestões de vingança, e quem se arrebata a ponto de expor o ódio com extremos deve esperar as devidas represálias. No caso do tal muro, fica óbvio que o ofendido pode ir à justiça, contra difamação ou coisa do tipo. Mas não deixo de pensar que a mulher traída foi a mais prejudicada: foi quem mais se envenenou, na febre do descontrole.

Imagino sua figura franzina, tentando compensar fragilidades na escrita ríspida e larga. Calculo o tempo que gastou para preencher toda a extensão do muro, no vandalismo certamente ocorrido de madrugada. De lanterna numa das mãos, canivete na outra, aplicou-se nos palavrões e desenhos supostamente obscenos, mas com um traço tão infantil. Devia chorar durante a tarefa, e mesmo depois não conseguiu dormir, à espera – de quê? De uma reação do homem. Queria, no íntimo, uma explosão parecida com a dela, algo que continuasse inflamando seus motivos para odiar – embora, no fundo, sua alma implorasse por trégua.

Se o antigo companheiro for esperto, adotará como revanche o desprezo. Ele garante um cozimento demorado das emoções ruins. O desprezado passa anos remoendo episódios mal resolvidos, enquanto a outra pessoa já superou tudo, ou tudo esqueceu. Dizem os antigos, inclusive, que esse tipo de violência é o mais cruel. Sobre isso, eu não opino, mas creio que –sendo tão silencioso e discreto – o desprezo é o único modo de praticar violência com elegância.

Tércia Montenegro (artigo publicado na coluna Opinião do jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/11/10/noticiaopiniaojornal,2062282/violencia-no-muro.shtml)