LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sábado, 31 de julho de 2010

"- Acredita no destino?
- Acredito que as coisas que nos sucedem são irremediavelmente parecidas conosco..."
(José Carlos Fernandes, na BD "Linha do Destino", In: Em Cena, nº6, 2003, p.27)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Dentro da paisagem

Quando viajo, entro num território longínquo, como se de repente pudesse cair dentro de uma pintura – ou tapeçaria, como o quis, num conto, a incrível Lygia. Acostumada a ver fotografias ou filmes da cidade para onde vou, por um minuto não acredito que aquele espaço é real, para além do cenográfico ou artístico. Havia alguma coisa em mim dizendo que era mentira, ilusão de câmeras, truque hollywoodiano. Não era possível que aquele lago fosse tão belo, ou aquela montanha... Não era sequer viável que as comidas tivessem cheiro e, de fato, sabor – e não parece absurdo entrar numa igreja onde as missas acontecem há sete séculos?

Preciso ver para crer. Por passar tanto tempo mergulhada em páginas, dentro de palavras e histórias, tenho tendência a pensar que tudo é fábula. Assim, vejo o túmulo de reis e poetas antigos como se achasse o atestado de que eles existiram – e isso é tão surpreendente como se me revelassem que os personagens de um relato viveram em carne e osso. Meu assombro com obras de arte é parecido: por mais que suas reproduções sejam divulgadas, tenho de comprovar o exato matiz daquela pintura, ou perceber a textura daquilo que um dia o escultor chamou de bronze ou pedra.

Mas não basta a visão. Comigo, viajar convoca todos os sentidos: estou dentro de uma paisagem insólita e não posso passear por ela como se fosse uma nativa num dia de lazer. Tenho de me assombrar, experimentar o êxtase ou o repúdio, potencializando as novidades que encontro, ou me comovendo com as semelhanças em relação ao meu lugar. Mas nunca alcançarei a postura blasé do desprezo, a indiferença dos que já esperavam por tal coisa, ou estavam treinados e prevenidos contra determinado aspecto.

Sem susto, não vale a pena viajar. Toda viagem é motivada por esse vício das descobertas e espantos: quem sai de seu canto procura o instável. Por isso, há algo de errado nos que planejam milimetricamente um roteiro, saindo e entrando de cartões-postais com a intenção de conferir cada localização e tirar umas fotos de prova para depois mostrar à família, sob a rubrica do “eu estive lá”. Imagino que, se essas pessoas posassem diante de réplicas feitas em estúdio, não haveria diferença em suas emoções.

A descoberta de cada elemento de um local, por ínfimo que seja, pode ter grande importância. Conversar com as pessoas sem a fluência da própria língua, entrar nos prédios públicos alheios, comer em restaurantes incomuns ou ouvir novos ritmos... tudo constrói, para o viajante, a impressão personalíssima da viagem que fez. É dentro desse conjunto inédito que gosto de me aventurar de perto – e, quando a natureza é espantosamente bela, não resisto ao impulso de tocá-la: grãos de areia, grama, sopro do vento, água. Digam que isso é o mesmo em qualquer parte do mundo; posso até concordar. Mas quando viajo, é como se reconhecesse um rosto absurdamente perfeito, e toco essas coisas para aprender a linha de seus traços, para me assegurar de que não estou dentro das palavras e da ficção. Estou na própria paisagem, e isso é real.


Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 28/07/2010. Disponível em http://opovo.uol.com.br/opiniao/opiniao/index.shtml)

sábado, 24 de julho de 2010

Recordações




Voltei de viagem há pouco e aqui vão duas das muitas fotos que trouxe: numa delas, estou com Ulisses, o gato luso do meu amigo Juva; na outra, uso uma típica - e felina - máscara veneziana.
Agora, os próximos dias provavelmente serão de adaptação, para organizar de novo a rotina. Mas nada jamais será como antes, claro. As viagens sempre interferem filosoficamente em mim. E não por acaso (que isso não existe) cito um trecho do Calvino, que estava petiscando hoje no almoço: " (...) mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a supresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos." (As cidades invisíveis, p.28)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Interregno


Durante as próximas semanas, estarei viajando - e isso implica não navegar na internet diariamente. Afinal, para ser livre é preciso esquecer computador, celular e relógio. A câmera, não, claro! Levo uma de reserva... Estou louca para mergulhar os olhos em lindas paisagens! Creio que elas vão compensar o silêncio das palavras.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Pelas palestras

A situação limitada de uma palestra ou conferência parece ser favorável a certos desentendimentos ou confusões especialmente toscas. Já passei por tantas circunstâncias bizarras que agora, ao receber um convite para um evento assim, vou preparada para o pior, embora sempre com a intenção de ver as “interferências” pelo lado do bom humor. Afinal, no mínimo terei mais uma constatação de que o pára-raios de loucos que carrego (invisível, sobre as costas) ainda está disposto e atuante.

A primeira vez é inesquecível, e felizmente aconteceu quando eu estava na plateia, e não no comando da palestra. Era um seminário sobre filologia, e todos os alunos de Letras estavam atentíssimos ao professor, quando de súbito ergueu-se do meio das cadeiras uma criatura colorida, esguia e oscilante, levantando um braço que serpenteava para pedir atenção. Quando o conferencista, muito educadamente, aceitou interromper o fluxo de seu raciocínio e deixou que o rapaz fizesse a pergunta, uma voz anasalada de afetação disparou: “Professor... eu gostaria de saber... o que o senhor acha da democracia holandesa?” Foi difícil para o professor não aderir aos risos que espocaram de todas as direções. Após um esforço traduzido em suspiro, ele disse ser aquele um assunto interessantíssimo, mas – tendo em vista que a palestra era sobre filologia – sua opinião ia ficar para outra hora. De imediato, decorei aquela técnica para driblar situações surreais.

Alguns episódios foram mais intensos porque eu estava na condição de protagonista, mas a todos sobrevivi – com boas risadas depois. Lembro o mais recente, com um francês beligerante que nunca tinha lido o escritor Imre Kértesz, Nobel de Literatura em 2002, cuja obra eu analisava. Até aí, nenhum problema: mas tudo se tornou dramático quando, espetado pela ousadia com que Imre falou da “felicidade nos campos de concentração”, o tal francês descontrolou-se, em cuspidelas de um agressivo sotaque. Ainda me escandaliza que a respeitabilidade possa ser esquecida – principalmente porque, sem ela, a mente se congela em “verdades”, elemento crucial das tiranias.

O francês me chocou, mas não chegou nem perto de abordagens mais criativas, como a do sujeito que, numa oficina de literatura, apegou-se a um discurso ferrenho contra a colonização que o Brasil sofreu – sem que isso tivesse o mínimo nexo com o assunto de que tratávamos. Aqui, o drible do filólogo foi retomado... como também naquela ocasião em que um membro da audiência, visivelmente doido, pediu a palavra para advertir contra a chegada de alienígenas... E haveria vários outros casos que eu citaria – mas este texto já anda “pelas tabelas”, e é preciso encerrá-lo. Resta a sabedoria de um colega de profissão, quando diz: a gente sofre, mas pelo menos se diverte!


Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 14/07/2010. Pode também ser acessado em http://opovo.uol.com.br/app/o-povo/opiniao/2010/07/14/int_opiniao,2019875/pelas-palestras.shtml)

As incertezas

Um novo trabalho do grupo Bagaceira sempre surpreende. Seus espetáculos indicam buscas, experimentos inquietos à procura de novas linguagens, novas possibilidades teatrais. Em dez anos de carreira, seus artistas criaram um estilo inconfundível, enraizado por todos os espetáculos em aspectos de luz, figurino, texto ou atuação – mas isso jamais significou conformismo. Amadurecer um estilo não implica congelar-se em fórmulas, esquemas fáceis que dão certo para agradar ao público. Ao contrário, os trabalhos do Bagaceira sempre arriscaram, estiveram na linha fronteiriça das sensações complexas – seja com humor ou melancolia, erotismo ou efeito lúdico.
Dessa vez, com “Incerto”, a estranheza nasce com riso e amargura. Durante todo o espetáculo, existe a impressão paradoxal de que, pela metalinguagem, chega-se à vida em estado bruto. As reflexões sobre o teatro, seu valor ou necessidade para o próprio artista que o faz (e que às vezes o rejeita, saturado ou doído de decepções) levam a um entranhado de cenas extraídas do cotidiano de ensaios. A peça surgiu como urgência do grupo teatral, num momento em que dúvidas e conflitos interferiam de maneira inegável, e o prazer e os limites do ofício estavam em pauta.
Elegendo como principal argumento da peça a incerteza, percebe-se como tudo o que não parece inteiro ou totalmente construído incomoda. Incomodam as perguntas e inconstâncias. Questionar a verdade cansa e desgasta; destrói as relações, às vezes. Mas admitir essa necessidade é um ato corajoso, talvez o único ato de uma coragem especificamente humana. Todos os outros atos de bravura são movidos pelos básicos instintos de qualquer animal, menos esse: o impulso de indagar, expor-se insatisfeito, incompleto, dar a cara a tapa, ver-se pelos olhos dos outros e, assim, distanciar-se de si e encontrar, senão a identidade, pelo menos o caminho.
O caminho que se trilha, com recuos e bifurcações, poeira e neblina é o trajeto primário que o Bagaceira ousa mostrar, como quem abre as vísceras. Se é aflitivo olhar por dentro, a dor vem do fato de que todos nos identificamos com algum tipo de crise – mas poucos sabemos, desse ponto, extrair a criação. São muito raros os que fazem do processo o meio em si, com o grande objetivo de objetivar-se: olhar-se como personagem, para além do espelho, numa dimensão universal que, se por um lado se agiganta, nem por isso esconde as fraquezas e fissuras. Declarar as perturbações na superfície da arte: é esse o grande gesto, a escolha do espetáculo “Incerto”. Porque as angústias sempre foram matriz e motor dos inventos estéticos (e não só deles, mas de qualquer invento da humanidade) – porém restava admitir isso sem artifícios, escancarando os bastidores como quem alarga a alma.
Quando, magicamente, despe-se de alegorias, esse teatro se torna emblemático – porque, por um momento, a plateia esquece que há um texto (que em algumas passagens até se compõe com rimas, mostrando como foi construído e bem pensado). O público se engana ao considerar que as cenas vêm ao acaso, espontâneas e hesitantes, como se a peça ainda estivesse por começar – aquela peça que estamos acostumados a ver pronta, redonda e bem marcada.
“Incerto” celebra a truncagem, os fragmentos dinâmicos das relações entre as pessoas, os picos e abismos da geografia interna de cada um. Confessa o estar sempre “no quase”, e pela frustração admitida alcança a completude – não no sentido de acomodar-se num espaço fechado, mas justamente pelo contrário: abrindo os olhos para a dispersão, chega-se a um foco; embora depois se mude para outro, e ainda outro, ou outro... O autoconhecimento é teraupêutico porque primeiro desestabiliza, para que enfim se encontre um eixo, apesar de fluido.
A ilusão de que se faz vida, e não teatro, é a grande fisgada nesse trabalho do Bagaceira, sua solução que, por debaixo de toda a instabilidade exposta, vem muito bem consolidada. Afinal, as fronteiras entre ofício e paixão, carreira e prazer são mesmo assim: escorregadias ou titubeantes, plenas de uma incerteza tipicamente humana.

Tércia Montenegro – 03/07/2010