LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Don DeLillo


"J'écrivais sur des choses que j'ignorais savoir moi-même, ce qui est l'une des découvertes les plus agréables que l'on puisse faire."

--> lido hoje, na página do Le Nouvel Observateur. Impossível não postar aqui.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

CONVITE - 3 de novembro

Queridos leitores virtuais,

No próximo dia 3 de novembro, às 19h30, estarei participando de um debate na Livraria Cultura, sobre diários e blogs. Sintam-se todos convidados!

Maiores informações na página de eventos da livraria Cultura em Fortaleza:
 http://www.livrariacultura.com.br/scripts/eventos/resenha.asp?nevento=19563&sid=71823522112826496609052346&k5=65EE09&uid=

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Florencia


Existem obras de arte que nos impõem um renovado assombro. O reencontro com elas não significa a solução de um mistério ou a sensação de andar por território conhecido. Ao contrário, deparamos com antigas imagens como se fossem sempre novas e impenetráveis.

É isso o que ocorre com a série Adaptación Orilla, de Florencia Rodríguez Giles. Há três anos, as fotografias estiveram expostas dentro do projeto “Americanidade”; agora, voltaram ao museu do Dragão do Mar, na exposição “Estrangeiros”. A rigor, são as mesmas peças. Na prática, porém, as fotos reaparecem sob outra perspectiva, em diferente densidade.

A arte de Florencia, especialmente a série mencionada, parece criar um relato de atmosfera penumbrosa, mística. Os espaços fotografados são quase todos internos, com uma luz mágica que desabrocha ou explode de uma janela. Há figuras com máscaras ou chapéus de pano, caminhando sobre a grama que cresce violenta pela sala. As pessoas (ou criaturas) têm rostos serenos como moldes de cera – e assim também é a cabeça que repousa solta numa cômoda, fazendo contraste com o balé de alguns corpos, sua expressão ereta.

Há cabeleiras desfocadas e gente que invade um jardim tropical e terrível. Certos sujeitos parecem alienígenas, sobretudo aquele calvo, diante da mulher bicéfala que ignora um corpo sofrido a seus pés, sobre um piso em que se movem tartarugas. Há espaço para um cão, na agitação atarefada de um dos quadros: as pessoas ou manequins tocam montes de cabelo e outros objetos peludos, como se cuidassem de fazer uma mudança. Na sequência, desfilam com bagagem às costas, seguindo para fora da casa com colunas de árvores e piso de folhagem.

Uma das criaturas olha para o crânio que tem nas mãos, e ele resplandece feito uma joia. Todos vestem longas batas pretas e são andróginos, carecas ou com perucas de pano, ou ainda levam cabeleiras de planta ou no feitio de crina de cavalo, descendo pelo dorso. Numa das fotos, duas figuras olham para a câmera, e nós – espectadores – sentimos o constrangimento de invadir esse silêncio, essa intimidade absurda e dolorosa. Há névoa e sombra sempre, mesmo quando alguém contempla uma parede descascada, como se estudasse um mapa na linha das infiltrações.

Como a autora afirma em entrevista, o lugar em que passam as ações tem uma temporalidade específica, mas os personagens “poderiam ser medievais, contemporâneos disfarçados, antigos e imaginários”. É esse um dos contrastes que gera o estranhamento na obra de Florencia Rodríguez. Estas fotografias trazem um sabor específico que (talvez não por acaso) lembra os contos de Cortázar, outro incrível argentino.


Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 27/10/2010. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/10/27/noticiaopiniaojornal,2057050/florencia.shtml)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Recentes

Ontem, o espetáculo com a Teresa Salgueiro, na Concha Acústica, foi brilhante! Parece que veio a calhar para o acaso que nos últimos dias me fez mergulhar no Ulisses (segurando a mão do Nabokov, como incentivo) e assistir a O último selo.
Às vezes, é bom não planejar e ficar apenas assim, flutuando sobre os temas que surgem, sem buscar um fio condutor...

sábado, 16 de outubro de 2010

Le jour e la nuit. Cahiers 1917-1952


Da revista Serrote n° 5, destaco a matéria com os aforismos de Georges Braque - artista que, para mim, funciona como uma madeleine: viajo no tempo e volto às aulas de francês. Mas naquela época eu ainda não divisava o pensamento deste autor, nem suspeitava que suas reflexões fossem tão precisas. Identifiquei-me de imediato com algumas delas, que reproduzo abaixo:

Jamais teremos repouso. O presente é perpétuo.

A emoção não se deixa aprimorar nem imitar: ela é o germe, a obra é a eclosão.

Na arte, não se cria efeito sem retorcer a verdade.

Não faço como quero, faço como posso.

Contentemo-nos com fazer pensar, não tentemos convencer.

A arte é feita para perturbar, a Ciência tranquiliza.

Não se deve imitar o que se quer criar.

Na arte, só vale uma coisa: o que não se pode explicar.

Os que vão à frente dão as costas aos seguidores. É tudo o que os seguidores merecem.

Amo a regra que corrige a emoção. Amo a emoção que corrige a regra.

Definir uma coisa é substituir a coisa pela definição.

As ideias, como as roupas, se gastam e se deformam pelo uso.

Não se pode ficar o tempo todo com o chapéu na mao, por isso inventaram o cabideiro. Quanto a mim, encontrei a pintura para pendurar minhas ideias num prego.

Manter a cabeça livre: estar presente.

Minha tese se sustenta? É porque você a apoia.

A verdade existe; só se inventa a mentira.

O idealismo é uma forma convencional de esperança.

A forma e a cor não se confundem; são simultâneas.

O quadro está terminado quando se apagou a ideia.

Poucas pessoas podem dizer de si mesmas: estou aqui. Elas se buscam no passado e se veem no futuro.

A liberdade pode ser tomada, mas não dada. Para o comum dos homens, a liberdade é o livre exercício dos hábitos; para nós, é a transgressão do permitido. A liberdade não é acessível a todos, para muitos ela se situa entre a proibição e a permissão.

Entre os que praticam o culto de si mesmos, as convicções tomam o lugar da fé.

Em cada duas coisas que julgamos semelhantes, há sempre um sósia.

Não busco a definição. Tendo à infinição.

É o imprevisível que cria o acontecimento.

Uma coisa não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Não é possível tê-la em mente e sob os olhos.

Há que se dar por satisfeito com descobrir, e cuidar de não explicar.

Traçam a rota rumo a um ponto, mas ignoram a deriva.

A realidade só se revela quando iluminada por um raio poético. Tudo é sono ao nosso redor.

Para mim, não se trata mais de metáfora, mas de metamorfose.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Nós, os míopes

Uso óculos desde os cinco anos. Numa família de professores e míopes, lembro minha sensação de triunfo quando anunciaram que eu também deveria carregar aqueles acessórios de visão. Os óculos eram instrumentos mágicos, e não somente porque me traziam a limpidez de enxergar a distância, mas sobretudo pela extensão que criavam sobre meu rosto. Aquilo era uma moldura ou vestimenta que me protegia e me tornava, de algum modo, secreta e indevassável. Sim, porque eu, desde muito criança, já tinha gosto pela ficção, o que equivale a dizer: gosto pelo mistério.

Em toda a infância e adolescência, creio ter quebrado os óculos por duas vezes apenas – e tal acidente me deixava em desespero, inconsolável. Os cacos de vidro e armação eram mais trágicos que uma boneca mutilada ou um livro feito em pedacinhos. Eu amava meus óculos como se ama um pedaço do corpo, e ver sua destruição (mesmo sabendo que depois teria um novo modelo) me parecia algo terrível.

Houve momentos, entretanto, em que abandonei os óculos. Na época de escola, tirá-los podia ser o único recurso contra a timidez. Nas aulas de teatro, por exemplo, eu atuava de “rosto limpo”. Via claramente os companheiros com quem contracenava, mas ignorava os outros, espectadores afastados. A plateia, assim, nunca era crítica ou temível por suas expressões: transformava-se em massa de neblina, confundia-se com as sombras da sala.

Hoje, nas raras ocasiões em que a vaidade ou as exigências sociais exigem, uso lentes de contato. Mas é quando quero ter uma nova visão – desfocada, impressionista – que aproveito a miopia. Tiro os óculos sob as mais variadas luzes: na praia, ao entardecer, na penumbra, sob a água das piscinas... Vejo os coágulos dos postes, numa avenida à noite, ou percebo as formas sinuosas que cada objeto adquire.

Todo míope tem à disposição um exercício de abstracionismo, quando a realidade cansa: basta ficar com os olhos nus. Isso, para mim, nunca foi um defeito de visão, mas uma dádiva, virtude das mais criativas. Adoro o modo como as coisas se tornam de repente compactas, mas paradoxalmente suaves, em sua imprecisão de contornos. Súbito – ponho os óculos e... milagre! – enxergo ao longe, vejo as fisionomias que antes eram manchas, as letras que pensei serem borrões.

Chego a acreditar que esse duplo modo de ver o mundo cria afinidades entre os seus usuários. Afinal, o meu amado também é levemente míope, e faz parte do nosso fascínio despir os óculos para encontrar melhor o rosto do outro. É preciso descobrir, de maneira muito próxima, a curvatura dos cílios, o mapa da pele, o desenho das sobrancelhas, as cores nítidas do corpo, enfim. Tanta dedicação às minúcias e paixão pelos detalhes – eu garanto – só é possível para nós, os míopes.

Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 13/10/10. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/10/13/noticiaopiniaojornal,2052035/nos-os-miopes.shtml)

domingo, 10 de outubro de 2010

Arte e paciência

Finalmente, hoje tive um pouco de contato com arte! Foi necessária alguma insistência, pois na minha primeira parada, o CCBNB, mal pude me concentrar nas fotografias de António Menéres, sobre paisagens lusas numa varredura histórica dos anos 50 até hoje. Algumas imagens eram muito bonitas, mas eu estava verdadeiramente incomodada por uma pedagoga que distribuía, aos gritos, lápis de cor para crianças sentadas num dos cantos da galeria. A mulher, com um sotaque estranhíssimo, berrava para os meninos (que deviam ter de quatro a seis anos de idade) que na contemporaneidade todo mundo podia ser artista (sic!). Quando ela finalmente se calou, tomada pelo repentino bom senso de observar os futuros gênios do desenho, eu estourava de dor de cabeça. Desci até a exposição do primeiro andar, mas não tive paciência: ali também berravam algumas pessoas, confundindo diversão com ruído (uma coisa tão vulgar, meu Deus!). Qualquer tentativa de decifrar os sons da vídeo-instalação seria inútil, então eu desisti - além do que, geralmente essas propostas me dão um aborrecimento mortal. Aquela, então, pretendia discutir o papel do curador: não era o momento nem o local para eu refletir sobre isso. Provavelmente, pensaria a respeito de bom grado, se o vídeo passasse num canal de cultura. Ali, em meio àquela balbúrdia de um domingo no museu, não dava.
Acabei encontrando o mesmo tema, tratado com muito mais leveza e graça nos trabalhos de Jonathan Harker. Eu já os tinha visto antes, mas agora, com a mostra "Estrangeiros" no MAC do Dragão, pude rever não só a fotonovela, ótima pela ironia e humor, mas também os divinos trabalhos fotográficos da Florencia Rodrigues. Desde a primeira vez em que encontrei a série Adaptación Orilla, fiquei completamente arrebatada. Hoje experimentei tudo de novo e não vi o tempo passar: anotei as sensações, senti os bons arrepios, os estremecimentos que só esse tipo de arte causa... Algum dia vou abrir um tópico específico só para falar sobre Florencia. Por enquanto, volto ao Harker.
A discussão que este artista propõe, sobre arte e curadoria, envolve aspectos bem mais largos. Facilmente saltei deste ponto e me pus a pensar nos elementos de descontração (ou acaso), por um lado e, por outro, uma disciplina rígida no ato de fazer arte. Ambos podem ser os motores do produto artístico, mas parece que cada vez mais é preciso criar justificativas cerebrais e esconder o improviso. Para inscrever trabalhos, vê-los aceitos em museus ou editais, sempre existe a exigência de palavras vazias, que evoquem conceitos ou contrapartidas: é o ranço acadêmico invadindo os ambientes que administram a arte (o que não necessariamente significa que museus e galerias só abriguem "arte acadêmica", claro). Mas para que exigir do artista uma coerência, um projeto, se o seu território é o da liberdade? Claro que há os que, como eu, precisam uma organização, tempo e ilusão de consciência para criar - mas existem, às pencas, artistas que só produzem no caos.
O efeito do processo não interfere na estética final. O espectador nunca saberá do esforço ou da sorte que forjou as circunstâncias para que uma obra nascesse - e não deve, inclusive, saber: essa informação é íntima demais e não se destina ao consumidor do produto. A quem, então, essas instâncias enganam, ao exigir objetivos precisos na apresentação de uma arte? Tudo resulta num pacto burocrático - e os hipócritas gestores continuarão falando em pretensões ecológicas, enquanto as pilhas de papel crescem, documentos ridículos que nunca provam nada!
Falando em papel, outra exposição interessante no Dragão foi a Miguel Guiter, com suas filigranas. Um belo trabalho, feito com destreza e delicada paixão. Entretanto, apesar da advertência do curador (em letras bem visíveis, no texto da parede), encontrei mais de um comentário insensível no livro de assinaturas - coisas do tipo "Parabéns por usar material reciclável". Meu Deus do céu, dá-me paciência!

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Para sair da mesmice


Tenho feito poucas postagens neste blog, mas a realidade é que rareiam os assuntos interessantes. Os últimos dias têm sido de pura rotina, e não tenho visto nada em arte que de fato mexa comigo. Pode ser que neste fim de semana a coisa mude - afinal, estou planejando a ida a pelo menos duas exposições. Quanto a filmes, não vejo muita perspectiva de mudança: tudo o que encontrei foi obviedade e fórmula, recentemente (e o mais curioso é que as pessoas não se dão conta disso: continuam a ver os mesmos chavões e inverossimilhanças dizendo "Ai, que lindo" ou "Nossa, que impressionante!"). Esse tipo de coisa me cansa. Não pela inverossimilhança em si, claro, que a boa arte sabe trabalhá-la... O problema são os valores, frágeis e simplórios, por trás de todas essas imagens premeditadas!
Somente duas obras foram meu alento, por agora: o livro Aulas de literatura, do Nabokov (que mostra um leitor disciplinado, obcecado, cheio de prazer mas, também, de capacidade crítica), e a série Wachtman, de HQ, com argumento de Alan Moore. O volume 2, sobretudo, me extasiou pelo trabalho narrativo com o tempo. Claro que estou ressaltando mais a estrutura do enredo, mas o trabalho plástico também é incrível - e é ele o que permite "fatiar" a cronologia da história e revelar novas dimensões.