LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Nabokov & Pirandello

Trecho d'O olho, de Nabokov, que me lembra irresistivelmente Um, nenhum, cem mil, do Pirandello:
"Porque eu não existo. Existem apenas os milhares de espelhos que me refletem. Qualquer relacionamento que eu estabeleça, a população de fantasmas que parecem comigo aumenta. Em algum lugar eles vivem, em algum lugar se multiplicam.(...) Os dois meninos, aqueles meus alunos, envelhecerão e uma ou outra imagem de mim viverá dentro deles como um tenaz parasita. E então virá o dia em que a úlitima pessoa que se lembre de mim morrerá. Um feto invertido, minha imagem também murchará e morrerá dentro da última testemunha do crime que eu cometi pelo mero fato de viver. Talvez uma anedota qualquer a meu respeito, uma simples anedota em que eu figure, passará dele para seu filho ou neto e então meu nome e meu fantasma aparecerão transitoriamente aqui e ali por algum tempo ainda. Depois virá o fim."

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Contra o senso comum

Amigos, confiram minha crônica publicada hoje na coluna Opinião, do jornal O Povo. Está disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/12/21/noticiaopiniaojornal,2361144/contra-o-senso-comum.shtml

CONTRA O SENSO COMUM

            As férias chegaram! Como sempre, antecipadamente separei a pilha de livros que mais cobiço para esse momento. Desta vez, no topo está Nabokov, com O olho, numa edição recém-lançada. Meses atrás eu tinha me deliciado com A verdadeira vida de Sebastian Knight, e agora quero repetir o escritor. Nabokov, aliás, além de ficcionista foi professor, e o livro Aulas de literatura é uma obra compilada por anotações que ele preparou para seus alunos. Nunca esquecerei as ótimas reflexões que daí tirei – principalmente porque elas não traziam o velho ranço orientacional. Ao contrário, o autor russo sabia que, em matéria de arte, o recomendável ou o óbvio nunca é o mais interessante. O tal senso comum, que aprova uma tendência em determinado local, muitas vezes revela uma esterilidade, um conformismo que rejeita desafios. Assim acontece com toda visão estreita, que tende a negar o diferente – conforme diz Nabokov: “A cor do credo, da gravata, dos olhos, dos pensamentos, dos costumes ou da língua de cada um tropeçará irremediavelmente em algum lugar do espaço ou do tempo com a objeção fatal de uma multidão que detesta essa tonalidade particular”.
            Quem estará com a razão, na batalha das opiniões críticas e dos juízos estéticos? Novamente Nabokov não é doutrinário, não toma partido nem busca verdades inabaláveis. Ele escolhe a celebração do assombro, de um “estado mental infantil e especulativo, tão diverso do senso comum e da lógica”. Este é o caminho para o aprendizado, a verdadeira aula que acontece o tempo inteiro, quando deixamos desmoronar o muro dos conceitos pré-fabricados.
            Porém, não pense o leitor que as reflexões descambam para a anarquia, o vale-tudo em que simples inquietos se confundem com artistas reais. Nabokov distingue impulso e maturação – e explica isso com uma lição que nasce na própria essência eslava: “A língua russa define dois tipos de inspiração: vostorg e vdokhnovenie, que podem ser parafraseados como ‘arrebatamento’ e ‘recuperação’. A diferença entre um e outro é sobretudo de intensidade; o primeiro é breve e apaixonado, o segundo frio e sustentado. Quando as coisas estão maduras e o escritor começa a escrever seu livro, confiará no segundo e sereno tipo de inspiração – vdokhnovenie – companheiro fiel, que ajuda a recuperar e a reconstruir o mundo.”
            É esse universo – ao mesmo tempo livre e equilibrado – que o artista consegue manipular. Ele se distancia daquelas vozes que repetem suas fórmulas e proíbem divergências ou novidades.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

 

domingo, 18 de dezembro de 2011

De volta a Dalí (com uma pitada de Lorca) - ou o contrário

Tirei o fim de semana para saborear os efeitos da sexta-feira à noite, quando tive a alegria de me encontrar com os amigos Sérgio e Roberta. Não bastasse o jantar - com que Sérgio se firma como excelente chef, elegante e poético na criação de um menu inesquecível -, ainda recebi um maravilhoso presente, trazido da viagem espanhola que os amigos fizeram: Cartas escogidas, do García Lorca. Já comecei a ler parte dessa correspondência, que me confirma a ideia de que os artistas são avessos às coisas práticas e adeptos dos grandes tormentos da alma. Lorca, ainda estudante, mal suportava as exigências da família, para que ele  completasse os estudos e tivesse uma carreira formal. Assim ele desabafa numa carta dirigida ao pai: "A mi ya no me podéis cambiar. Yo he nacido poeta y artista como el que nace cojo, como el que nace ciego, como el que nace guapo. Dejadme las alas en su sitio, que yo os respondo que volaré bien." E, em outro momento, um pouco antes, sua reflexão sobre a existência atinge um rasgo dilacerante: "Mi tipo y mis versos dan la impresión de algo muy formidablemente pasional... y, sin embargo, en lo más hondo de mi alma hay un deseo enorme de ser muy niño, muy pobre, muy escondido. Veo delante de mí muchos problemas, muchos ojos que me aprisionarán, muchas inquietudes en la batalla del cerebro y corazón, y toda mi floración sentimental quiere entrar en un rubio jardín y hago esfuerzos porque me gustan las muñecas de cartón y los trasticos de la niñez, y a veces me tiro de espaldas al suelo a jugar a comadricas con mi hermana la pequeñuela (es mi encanto)... pero el fantasma que vive en nosotros y que nos odia me empuja por el sendero. Hay que andar porque tenemos que ser viejos y morirnos, pero yo no quiero hacerle caso... y, sin embargo, cada día que pasa tengo una duda e una tristeza más. Tristeza del enigma de mí mismo!"
Essa leitura de Lorca invariavelmente me leva de volta a Dalí, cujo Diário de um gênio conheci poucos meses atrás (confira os comentários neste mesmo blog). Óbvio que são dois artistas distonantes, com temperamentos e estilos bem diferentes - mas, se existe uma atmosfera nacional para a criação de gênios poéticos, sinto que ambos compartilham da mesma bênção e se tornam irmãos em algum ponto inominável. Aliás, para adensar ainda mais essa sensação, estou com dois filmes à espera para hoje e amanhã: Ensaio de um crime, do Buñuel, e Poucas cinzas, de Paul Morrison. Os dois foram recomendados pelo Sérgio e, embora eu já conhecesse o primeiro, senti uma imensa vontade de revê-lo agora (principalmente para inserir o Buñuel na trindade espanhola). Quanto ao segundo filme, parece que distorce um pouco as relações entre Dalí e Lorca, em nome de um sensacionalismo homossexual (mas ainda não o vi, para opinar a respeito). De toda forma, a gente sabe que muitos filmes de pretensão histórica escorregam na liberdade dramática, pois de perto nenhuma vida tem glamour hollywoodiano. É preciso assistir a esses filmes com ressalvas, portanto. Ontem, por exemplo, eu vi A última estação, que trata dos últimos dias de Tolstói. Apesar da ótima caracterização do ator principal, do cenário e figurino perfeitos, fiquei incomodada com o fato de os atores falarem inglês - e também tenho que dizer que a tal Sofia, esposa do escritor, não tinha um comportamento verossímil em certas cenas...Mas - o que se pode fazer? É preciso dar um desconto, porque muita coisa surge devido às intenções comerciais que motivam essas obras.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Babette

Amigos, se puderem, leiam minha crônica publicada hoje, no jornal O Povo. Está disponível também no site http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/12/07/noticiaopiniaojornal,2350781/babette.shtml


BABETTE

            Dentre todos os que tiveram influência sobre meus hábitos vegetarianos, ninguém foi mais importante que Babette. Seu nome, retirado de um filme, evoca a visão de banquetes, ágapes infinitos e suculentos. Não à toa: eu realmente encontrei Babette numa festa assim.
            Anos atrás, eu alternava minhas incursões no magistério com trabalhos fotográficos em aniversários, casamentos ou formaturas. Desde que houvesse bom tempo, lá estava eu, com minha câmera. A ocasião a que me refiro era especialmente chique, cheia de mulheres com penteados escorridos. Eu já havia banhado com flash todos os sorrisos artificiais presentes e me dava ao luxo de descansar um pouco, enquanto serviam o jantar. Foi então que, para meu horror, percebi qual era o prato principal: um pato inteirinho, com todas as penas, completamente íntegro. Tinham feito algum trabalho estético para que ele brilhasse num azul-turquesa, que era a exata cor das toalhas das mesas. E ali, cada grupo de convidados recebia a sua porção – ou melhor, o seu pato, numa travessa. Reparei que os exemplares deviam ser ainda filhotes, pelo tamanho, e estavam dispostos numa pose congelada, como se arrumados por um taxidermista. Diante dos meus olhos mudos de pânico, o garçom colocou um dos bichos e acrescentou um prato vazio, com talheres.
            Nenhum dos convidados estranhava a refeição; ao contrário, todos espetavam suas aves e gargalhavam, ao trinchá-las por entre penas azuis. Faltavam alguns minutos para eu fosse liberada do evento, e decidi mergulhar a vista na câmera, repassando as imagens gravadas na memória da máquina. Era difícil distrair-me, e eu tinha vontade de fugir e nunca mais entregar as fotos daquela gente sórdida. No entanto, veio a ideia de fotografar o pato servido à minha frente, para o caso de uma posterior denúncia. Foi quando percebi um tique, um movimento mínimo, da criatura turquesa que despertava.
            O pato parecia embriagado; se não chegou a ser cozido, pelo menos tinha sofrido alguma pancada. Em segundos, porém, agitava as asinhas, querendo descer da travessa. Com o coração saltando, impedi que o bicho se estatelasse da mesa ou fosse visto por um garçom. Peguei-o – e fiquei atarantada. Se o levasse ao banheiro para lavá-lo da tinta, certamente encontraria várias dondocas fofocando. Poderia convencê-las de que carregar um pato numa mão e uma câmera na outra fazia um estilo cult – mas não estava disposta a palhaçadas. Resolvi escapar da festa na mesma hora.
            Em casa, a presença da ave agitou meus gatos, mas consegui tranquilizar todo mundo depois que o pato – já limpo e alimentado – foi trancado para dormir num banheiro. Na manhã seguinte veio o batismo: o pato era fêmea, e tinha me presenteado com um ovo, talvez o seu primeiro.
            Uma semana depois, deixei Babette no Eusébio, na fazenda de um amigo que cria patos pelo prazer de vê-los nadar no espelho d’água. Ela foi bem recebida e virou uma pata praticamente igual às outras, mas eu conseguia distingui-la por certa sombra azulada, que nunca se despregou totalmente de suas penas.
            Babette fez com que eu nunca mais comesse aves. Ah, e fez também com que eu não entregasse as fotos daquele evento...        

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Para afixar com ímãs na geladeira

                                                        Raymond Chandler com Big Sleep

domingo, 4 de dezembro de 2011

Eu servi o rei da Inglaterra


A excêntrica família de Antônia sempre foi o meu referencial de filme no estilo surreal-divertido, com inúmeras pinceladas inteligentes e artísticas. Ontem, porém, encontrei uma obra que rivaliza magnificamente com aquela: Eu servi o rei da Inglaterra, filme tcheco de 2007. O título original é Obsluhoval jsem anglického krále, e por aqui já se vê o parentesco eslavo do tcheco com a língua polonesa (confirmado em muitos diálogos, pela pronúncia). Junte-se a esse sabor afetivo a lembrança de que Milan Kundera, um de meus autores preferidos, é também natural desse território linguístico. Alguém poderia argumentar que, por causa desses pontos, eu me tornei partidária do filme logo de cara. É possível, é possível. Mas ainda assim sei que muitos vão apreciar essa dica - mesmo que por outros variados motivos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

a máquina de fazer espanhóis

Maravilhosa, a impressão d'a máquina de fazer espanhóis, livro do valter hugo mãe. Este autor foi muito badalado na última festa de Paraty, mas não sem motivos. Sua narrativa não deve nada à destreza do Saramago e do Lobo Antunes. Claro que para um leitor brasileiro às vezes o tema de Salazar soa um pouco repetitivo na literatura portuguesa recente - mas o que sabemos nós dessa ferida, afinal? Se a ditadura no Brasil não ganhou um alcance temático tão forte, isso são idiossincrasias nossas (culpa da mania de esquecer e descuidar, talvez). De toda forma, o universalismo do texto do hugo mãe transcende essas âncoras locais. Deixo vocês com um fragmento que prova isso:
"deus é uma cobiça que temos dentro de nós. é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante. deus é uma inveja pelo que imaginamos. como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante da vida. queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe nem vai existir. e também inventamos deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. é tão mais fácil gerir os vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. é tão mais fácil se esta ideia for vendida a cada pessoa com a agravante de se lhe dizer que, um dia, quando morrer, esse mesmo sinistro ser virá ao seu encontro para o punir ou premiar pelo comportamento que houver tido em todo o tempo que gastou. e a comunidade respira mais de alívio por saber que assim estamos todos policiados da melhor maneira, temos um polícia dentro de nós, um que sendo só nosso também é dos outros e, a cada passo, pode debitar-nos ou acusar-nos e terminar o nosso percurso com facilidade. eu sei que a humanidade inventa deus porque não acredita nos homens e é fácil entender por quê. os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros." (pp.194-5)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Fotos do Felipe



O Felipe Abud é o melhor fotógrafo de gatos que eu conheço - embora o conheça de fato indiretamente, através da amiga Carmélia, que sempre me manda as imagens lindas que ele faz. Vale a pena homenageá-lo!

Livro novo à vista!

Queridos amigos,

É com muita alegria que venho informar esta novidade: meu livro novo de contos, O tempo em estado sólido, foi escolhido na seleção de originais da editora Grua, de São Paulo, e sairá no primeiro semestre de 2012. A notícia está disponível no http://colunas.cbn.globoradio.globo.com/platb/tempodeletras/2011/11/26/autores-selecionados-pela-grua-lancam-livro-no-ano-que-vem/
Vocês podem conhecer um pouco da editora pelo site http://www.grualivros.com.br/
Abraços
Tércia

sábado, 26 de novembro de 2011

Storia dell'arte italiana

Semanas atrás, pude frequentar na Casa de Cultura Italiana um curso rápido sobre história da arte, ministrado pela professora Cristina Gervasi. A parte mais empolgante foi certamente a que tratou da contemporaneidade - e isso, não que eu despreze os clássicos - ao contrário! É que, de tanto estudar os antigos, já não havia muita informação nova para mim nessa área. Os artistas atuais, entretanto, não somente trazem propostas insólitas (com certa dose de polêmica, às vezes), como ainda são pouco conhecidos aqui no Brasil. Assim, a grande oportunidade que eu tive para começar a conhecer a obra deles foi esse curso. Compartilho com vocês alguns nomes bem interessantes:
- Oliviero Toscani (é o famoso fotógrafo das campanhas de publicidade da Benetton. Sua página pessoal é http://www.olivierotoscani.com)
-Matteo Basilè (fotógrafo romano que tem um estilo surrealista incrível. Vale a pena ver seus trabalhos em http://www.matteobasile.com/newsite/works)
- Arash Radpour (é um fotógrafo de moda muito inventivo e perturbador. Não achei sua página pessoal, mas há várias de suas imagens disponíveis no google.it)
- Paolo Tamburella (artista multimidiático, tem projetos temáticos que passeiam pelo mundo de um modo criativo. Confira em http://www.tamburella.net/)
- Alessandro Carboni (conheça em http://www.alessandrocarboni.it/)
- Maurizio Cattelan (tem obras surreais também, e muitas irônicas - como a do Hitler de joelhos. A imagem que ilustra esta postagem é dele: uma obra intitulada Not afraid of love)
Claro que ainda há outros inúmeros artistas geniais que (lástima!) permaneço sem conhecer - mas creio que, por enquanto, a obra destes serve como um ótimo alívio da realidade, essa coisa bruta e feia que nos cerca.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Por um mundo de silêncio

Crônica publicada hoje, no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/11/23/noticiaopiniaojornal,2340372/por-um-mundo-de-silencio.shtml

POR UM MUNDO DE SILÊNCIO


            Já sabemos que a vida moderna é incrivelmente barulhenta. Mas como se não bastassem os ruídos de motor e as insistências de buzinas com os quais a maioria das pessoas se acostumou, a tecnologia parece alimentar novos e irritantes sons. São alarmes e guinchos enlouquecidos por garagens e estacionamentos, toques de celular nos estilos os mais absurdos (com músicas toscas, choro de bebê, hinos futebolísticos ou som de derrapagem de pneus), e o curioso é que os proprietários de tais máquinas nunca se constrangem por invadir, com suas explosões sonoras, o que antes era um pacífico silêncio.
            Ao contrário, soa “normal” que alguém se agite e produza ruídos como um frenético, e na falta (ou descanso fugidio) das máquinas, sente-se um desespero por falar, puxar conversa, tossir ou bater o pé, qualquer coisa que ultrapasse o hiato silencioso – sinal de angústia para muitos.
            Talvez os barulhentos considerem o silêncio um tipo de tristeza ou de morte; por isso, disfarçam, produzindo apitos, vozes ou cicios. Tudo vale para espantar o fantasma do vazio auditivo: banda de forró com refrão esganiçado, tv ligada o tempo inteiro, rádio na cozinha, mp3 durante o passeio, “som ambiente” em restaurantes e hotéis... Somos tão bombardeados sonoramente, que nem atentamos mais. Entretanto, mesmo que a percepção momentânea ignore o estresse, o corpo sofre.
            Biologicamente, devemos rejeitar ruídos metálicos, estridentes e artificiais. Não é possível que a pulsação cardíaca se mantenha estável, por exemplo, dentro de um carro em que há diversas sirenes (sensor de velocidade, sensor de ré, paineis falantes etc), até porque cada uma delas parece feita para estourar os miolos como se fossem bolhas. Se alguém fabricasse tais dispositivos com melodias tranquilas, sons de pássaros ou violinos, seria diferente – mas essa ideia é inviável, e sabem por quê? Por que os empresários por trás das máquinas querem, em cada detalhe, nos afastar da natureza e da arte. Um dia não ouviremos mais bem-te-vis ou galos (quantas pessoas ainda os ouvem?) e teremos desaprendido a escutar as águas do mar e o vento nas palmeiras. E hoje a tecnologia, através dos seus usuários invasivos, já nos força a antecipar essa ocasião catastrófica: um futuro em que não teremos de jeito nenhum os sons meigos do mundo.
            Desconfio das pessoas tagarelas, dos inquietos com seus joguinhos que espocam em miniteclados – e detesto sinceramente os fãs de campainhas (o que há de errado com batidas na porta?). Por causa de todos eles, não me desfaço de dois pequenos milagres na forma de esponjinhas discretas: meus protetores auriculares, que escondo sob o cabelo durante reuniões tempestivas ou sempre que preciso me proteger do barulho –  esse lixo invisível de alta frequência.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O conto brasileiro contemporâneo


Cheguei em casa há pouco e fui recebida por uma ótima surpresa postal: exemplares d'O conto brasileiro contemporâneo, na linda edição organizada por Carmen Villarino Pardo e Luiz Ruffato! Um dos meus textos integra esse volume, na companhia de autores como Adriana Lisboa, Bernardo Carvalho, Cíntia Moscovich, Cristóvão Tezza, João Anzanello Carrascoza, Marçal Aquino, Milton Hatoum e Ronaldo Correia de Brito, dentre outros. Só de imaginar que um conto meu está circulando por Santiago de Compostela, fico com uma grande vontade de viajar para lá!

domingo, 13 de novembro de 2011

Os meus ga(ro)tos

De tanto falar nos felinos de outrem, baixou aqui em casa uma ciumeira. Tive que fazer uma sessão-rápida de fotos da gatarada, para uma exposição blogueira. Então, com vocês, os ga(ro)tos daqui de casa, os reis do pedaço, com as respectivas biografias e características temperamentais.
Este é o Gavito; com 10 anos, é primogênito e líder absoluto do lugar. Tem personalidade afabilíssima, gosta de pessoas e é o único que não me faz passar vergonha diante de visitas. É divertido e brincalhão e aceita ser pego no colo como um bebê - por isso, tem de suportar que eu o sufoque diversas vezes por dia (rs).
Apelidos: Gavinho, Gavi, Vitinho, Vito, Vivi.
Voilà Grafite, o negão lindo e manhoso, de 8 anos de idade. Embora a sua cara normal seja séria e ele não se acostume com nenhum ser humano além de mim, devo revelar que seu temperamento é o de um gentleman (afinal, vocês conhecem outro gato que corra para vomitar bolas de pêlo na caixa de areia?). Ele só perde a pose quando entra na sessão-escovada: daí, ele se joga no chão, ronrona alto, vira de barriga pra cima  e pensa que é de novo filhote.
Apelidos: Grafi. Fitinho, Fiti, Grafinho, Pretão.
Gaia é a princesa soberana, que jamais aceitou a presença de outra fêmea em casa - afinal, ela precisa continuar sendo o pomo da discórdia entre os dois persas e não aceita concorrência nesse ramo! Ciumenta ao extremo, ela é meiga e brincalhona; parece uma doida quando se põe a correr atrás de bolinhas ou barbantes. Tem pânico de chuva e ruídos altos, por causa de sua infância traumática: eu a encontrei filhotinha, num dia de tempestade, perdida na academia de yoga que eu frequentava, 7 anos atrás.
Apelidos: Gagá, Lady Gaga, Gainha, Gaiota, Gaiata, A Gata do Faquir.

Os gatos de Patricia

De ontem para hoje, passei bons minutos com a leitura d'Os gatos, da Patricia Highsmith. Eu já procurava há tempos este livro, anunciado mas até então nunca visto, na coleção da L&PM. Ontem finalmente consegui encontrá-lo na livraria - junto com a maravilhosa nova edição dos poemas da Wisława Szymborska (mas esta eu ainda não comecei a ler; estou só curtindo a felicidade clandestina...). O pequeno volume da Patricia traz três poemas (apenas razoáveis), três ótimos contos e um ensaio, além das ilustrações, lindas aquarelas que ela mesma fez, inspirada nos seus siameses. Nesta foto, conseguida na internet, ela posa com o seu Ripley-da-vida-real. Abaixo, reproduzo para o(a) leitor(a) gatófilo(a) algumas passagens do ensaio sobre felinos:
"Gosto de gatos porque eles são elegantes e silenciosos, e têm efeito decorativo; uns leõezinhos razoavelmente dóceis, andando pela casa. (...) Raymond Chandler gostava de ter um gato roliço junto dele, ou sobre a escrivaninha. Simenon é frequentemente fotografado com algum de seus gatos, em geral um gato preto. Os gatos oferecem para o escritor algo que outros humanos não conseguem: companhia que não é exigente nem intrometida, que é tão tranquila e em constante transformação quanto um mar plácido que mal se move. (...) Um gato faz de um lar, um lar; com um gato, um escritor não está só e, no entanto, está sozinho o bastante para trabalhar. Mais do que isso, um gato é uma obra de arte ambulante, dorminhoca e em constante transformação. (...) Na verdade, ninguém faz uso de um bom quadro na parede, ou de um concerto de Beethoven, e, no entanto, eles podem ser uma necessidade na existência de um indivíduo."

sábado, 12 de novembro de 2011

Sławomir Mrożek


Estive lendo recentemente os ótimos contos deste autor polonês, que não conhecia até encontrar uma edição em língua espanhola de El Árbol. Como suspeito de que não existem traduções para o português deste livro, aventuro-me no gesto de eu mesma traduzir alguns destes contos. Escolho os mais curtos e espirituosos, para a diversão de vocês. Eis o primeiro presente de Sławomir Mrożek:




IMMANUEL


– Que é isso? – exclamou o produtor depois de dar uma olhada na primeira página do roteiro – Está de pé e pensa? E por que não de noite?
– Pensa, porque assim começa tudo. E tem que ser de noite, porque ele deve ver as estrelas. No livro está claramente: “O céu estrelado sobre a minha cabeça e a lei moral no fundo do meu coração.”
Tratava-se de uma adaptação cinematográfica da Crítica da razão pura de Immanuel Kant.
– Está de pé! Mas se numa película tem que haver movimento, é você um principiante ou o quê? Que caminhe, ao menos; ou melhor, que corra, sem fôlego, porque talvez alguém o persiga. Isso dá dinamismo e desperta o interesse do espectador. Pode ser de noite, se quiser.
– Mas se corre, não pensa, porque não tem tempo.
O produtor sumiu nos próprios pensamentos, como Kant fizera nos outros tempos.
– Já sei. Mudaremos a situação. Kant está de pé na beira de um bar, com a barba por fazer, porque tem problemas. Vamos ver, vamos ver. Por que usa peruca? Era calvo ou o quê?
– É um filme de época, histórico.
– Você ficou louco? Quer fazer Os três mosqueteiros ou o quê? Vamos transportá-lo para os tempos modernos. Noite, num bar, vários tipos ao redor, compreende? A vida em si.
– Mas o que acontece com as estrelas?
– Muito simples. No bar existe um televisor, precisamente na Guerra das galáxias. Kant está assistindo, ou seja, vê as estrelas.
– E a lei?
– Que lei?
– “A lei moral no fundo do meu coração.” Ele escreveu isso claramente.
– Sem problema. O sheriff entra no bar e Kant sente medo porque não tem a consciência limpa. O melhor será a droga.
Folheou umas quantas páginas do roteiro.
– “Imperativo categórico?” O que é isso? Algo relacionado com o imperalismo? Não estaria mal.
– Não sei, mas me parece que se refere a se estar obrigado a fazer algo.
– Claro que está obrigado a fazer algo. A mudar este roteiro. Aqui Kant diz: “Este é meu imperativo categórico”, imediatamente depois de lhe ter dito que não se casará com ela. Isso não pode ser; está muito frouxo.
– Por que muito frouxo? Mas se ela o interessa.
– Mas o sexo normal já não interessa a ninguém. Kant tem que ser ao menos bissexual. Acrescentaremos um sobrinho.
– Por que um sobrinho?
– Porque será menor de idade. Kant é seu tio e, de quebra, teremos também um incesto. Agora tudo se encaixa: o sobrinho é um drogado, Kant lhe proporciona a droga e por isso tem medo do sheriff.
Terminamos a película em duas semanas. Chamava-se Meu nome é a existência, porque desde o princípio se tratava de uma película intelectual, por isso nos baseamos em Kant. Mas apesar disso tivemos um grande êxito de público. A popularização da cultura começa a valer a pena.

Sławomir Mrożek


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Conversas com Woody Allen

Terminei de ler este livro de entrevistas, organizado por Eric Lax, ao longo de mais de três décadas de conversas com Woody Allen. É uma obra apaixonante, que revela um artista incansável, com um raro senso de dimensão das coisas e dos valores devidos (à arte e à própria vida). Selecionei alguns trechos para ilustrar isso:
"À noite, quando vou dormir e encosto a cabeça no travesseiro, ou quando ando pela rua, gosto de ficar pensando em ideias para histórias. Estou sempre pensando em novas tramas. Eu faria qualquer coisa para evitar aquele momento horrível de 'O quê que eu vou fazer agora?'. (...) é nesse intervalo que um escritor pensa em mudar de profissão." (p.38)
"Infelizmente, nós temos de escolher a realidade, mas no fim ela nos esmaga e decepciona. Minha visão da realidade é que ela sempre foi um lugar triste para estar [ele faz uma pausa, solta uma pequena risada], mas é o único lugar onde você consegue comida chinesa." (p.42)
"Sem dúvida, comédia é mais difícil de fazer do que coisa séria. Também não tenho nenhuma dúvida de que a comédia tem menos valor do que a coisa séria. Tem menos impacto, e acho que por uma boa razão. Quando a comédia aborda um problema, ela brinca com ele, mas não resolve. O drama trabalha a questão de um modo emocionalmente mais satisfatório. Não quero parecer brutal, mas existe algo de imaturo, de segunda linha, em termos de satisfação, quando se compara a comédia com o drama. E vai ser sempre assim. A comédia nunca, nunca terá a estatura de A morte do caixeiro-viajante, ou de Um bonde chamado desejo, ou de Longa jornada noite adentro. Nenhuma dessas, nem a melhor delas. Se você pega Escola de escândalo, As rãs, Pigmalião, A mulher do campo, Do mundo nada se leva, Nascida ontem, A primeira página, Tempos modernos, Diabo a quatro, A general - e essas são as melhores de todas -, elas nunca terão o impacto de O sétimo selo, O encouraçado Potemkin e Ouro e maldição, porque na comédia existe alguma coisa menos satisfatória, mesmo sendo mais difícil de fazer. Ao dizer isso, falo só por mim." (p.102)
"Sempre espero que o público vá gostar do filme, mas jamais posso cair na armadilha de fazer algo que não seja exatamente o que eu quero, só para ser apreciado. Melhor não ser apreciado, mas ser bom. Melhor tentar crescer e falhar de maneira humilhante do que jogar no que é certo ou, pior, fazer troca de favores." (p.105)
"Não tenho grande respeito pelas instituições. Realmente acho que o traço mais marcante da existência humana é a desumanidade do homem com o homem. Olhando de longe, se fôssemos observados por gente no espaço, acho que a conclusão seria essa. Não acho que eles ficariam deslumbrados com a nossa arte ou com tudo o que realizamos. Acho que ficariam de certa forma assombrados pela carnificina e pela burrice." (p.122)
"(...) não existe honra que um ser humano possa me dar que signifique alguma coisa para mim. Para mim, receber alguma cosia que tenha significado para mim exigiria um universo diferente. (...) os prêmios são feitos para juntar poeira; eles não mudam a sua vida, não afetam sua saúde de forma positiva, nem a sua longevidade ou a sua felicidade emocional. Os lugares que você quer consertar na sua vida, ou ajudar; o ajuste e o conforto de que você precisa, não são tocados pelas grandes honras do mundo." (pp.162-4)
"(...) o único conselho em que posso pensar é que só o trabalho conta. Não leia a seu respeito, não tenha grandes discussões a respeito de seu trabalho, simplesmente mantenha o nariz enfiado do trabalho. (...) Quanto menos você pensar em si mesmo, melhor. (...) Apenas trabalhe bem, não perca tempo pensando em mais nada, não se junte ao circo do show business, não preste atenção nas distrações que as pessoas lançam na sua direção, e tudo o mais se encaixa no devido lugar. (...) À medida que fico mais velho, a palavra 'legado' sempre aparece, e pessoalmente não estou nem um pouco interessado em legado, porque acredito firmemente que, quando se morre, pôr o seu nome numa rua não ajuda em nada o seu metabolismo - eu vi o que aconteceu com Rembrandt, Platão, e toda essa gente ótima. Eles simplesmente jazem lá. (...) O grande Shakespeare não está nada melhor do que algum vagabundo sem talento que escrevia peças na Inglaterra elisabetana e não conseguia quem produzisse, e quando produziam todo mundo fugia do teatro. Não que eu ache que seja totalmente desprovido de talento, mas não tenho talento suficiente para fazer meu sangue circular depois que o rigor mortis se instalar. Então legado não importa nada mesmo. O melhor jeito de dizer isso foi com a minha piada: 'Em vez de sobreviver nos corações e mentes dos meus semelhantes, prefiro sobreviver no meu apartamento'." (pp.463-4)
"Se o mundo inteiro está celebrando esta música ou aquela peça, você precisa continuar fiel às suas convicções, por mais adversas que sejam. Vai descobrir que não é tão difícil. Se eu gosto de alguma coisa ou de alguém, não me importa a mínima se ninguém mais gosta, e se eu não gosto, não gosto. (...) Não vou mudar o meu estilo ou o meu assunto porque alguém me critica. Não conseguiria, mesmo que quisesse. (...) O trabalho existe independentemente de tudo o que falam a respeito dele. Se a coisa é boa, continua boa apesar de todo o palavrório contra ou a favor. E se não é boa, vai se dissipar, por mais popular que possa parecer no momento." (pp.465-6)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Por incrível que pareça

Esta minha crônica foi publicada hoje, no jornal O Povo. Está disponível também no endereço http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/11/09/noticiaopiniaojornal,2331474/por-incrivel-que-pareca.shtml



POR INCRÍVEL QUE PAREÇA

            Um narrador é, antes de tudo, alguém que gosta de histórias, e gosta tanto que não pode viver sem inventá-las. Ora, nestas crônicas aqui publicadas, um dos meus grandes prazeres é ultrapassar a própria criação do fato literário, para transbordar pelos fatos reais. E isso acontece sobretudo quando vocês, leitores, dedicam um tempinho para me enviar mensagens, contando suas experiências particulares, compartilhando situações únicas. Eu, então, entro na posição de espectadora da história, tão maravilhada quanto diante de milagres – sim, porque há narrativas que parecem mágicas, absurdas ou inexplicáveis.
            Na última quinzena, publiquei um texto sobre medicina, mais especificamente sobre doenças de nomes estranhos ou características bizarras. A reação foi imediata: uma dúzia de leitores me escreveu, detalhando o tema em vários outros exemplos a partir de vivências pessoais. Não terei espaço suficiente para mencionar todos os relatos, portanto (sem desmerecer nenhum) seleciono aqueles que me pareceram realmente assombrosos.
            Um leitor menciona a patologia mental que vitimou certo parente seu. Conforme diz, os médicos nunca chegaram a um diagnóstico definitivo, mas parece que o homem sofria de um mal esquizofrênico, que o levava a dar nome próprio a cada parte de seu corpo. Assim, o olho direito chamava-se, digamos, Carlos; o esquerdo, José; a sobrancelha esquerda era Maria; a direita, Josefa. Após a longa tarefa de batismo, feita com uma simples lista, o doente passou ao projeto – muito mais demorado – de memorizar cada um daqueles nomes, com suas respectivas identidades. Finalmente, conseguiu decorar tudo, a ponto de gastar mais de meia hora quando se apresentava, recitando todos os nomes e localidades corpóreas, como quem resgatasse uma genealogia que lhe garantia status e personalidade. Quando esse homem morreu num acidente de automóvel, felizmente o obituário limitou-se a citar seu nome de registro – senão, era de se pensar que ali teria morrido uma multidão.
Outro caso estranho é o do leitor que afirma ter uma rara doença conhecida como Retardo Sensitivo. Ela consiste num defeito na medula espinhal e em certas glândulas do corpo que começam a “atrasar” as sensações de dor ou prazer. Assim, por exemplo, pode-se queimar a mão e sofrer os martírios do fogo apenas horas depois. O sujeito relatou a situação embaraçosa em que se viu quando, durante uma audiência no fórum, experimentou o orgasmo que deveria ter sentido na véspera: assim, não somente a doença o tornava um amante frio, como agravou sua posição de réu, num processo trabalhista.
            Há episódios envolvendo moléstias como o reumatismo do deserto, a goma do cérebro, a hiperceratose em mosaico e a hiperemia passiva – mas agora basta de falar em doenças! Estamos num jornal, e certamente o leitor ainda terá, nestas páginas, muitos outros assuntos tristes...

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

domingo, 6 de novembro de 2011

As esganadas


 Li, neste fim de semana, As esganadas, do Jô Soares. É uma boa leitura de interregnos: rápida, com os ingredientes policialescos de praxe e temperada de humor. Porém, não me satisfez de todo - o livro é escrito com a agilidade de um romance de suspense, mas a pressa é tanta que derrapa em inverossimilhanças. Por exemplo, como o magro assassino Caronte consegue suspender com tanta facilidade os corpos de suas vítimas obesas? Como ele é proprietário de uma funerária e de um matadouro sem despertar suspeitas? E, principalmente, como é um excelente músico, um embalsamador de profissão, um ótimo cozinheiro e um conhecedor de artes plásticas - tudo, ao mesmo tempo? Os personagens são rasos e caricatos - e acredito que uma caricatura, que é coisa essencial para o humor ( não esqueçamos que Jô Soares é, antes de tudo, um comediante), pode, e até deve, ser profunda.
A linguagem é outra decepção. Claro que não chega a ser ruim ou desleixada (a inteligência e erudição do autor inviabilizam esta hipótese), mas é objetiva demais, roteirística e saltitante em torno dos fatos, sem pretensões estéticas. Às vezes, abundam os adjetivos com intenção de paródia - e talvez o efeito fosse curioso numa narração in off de cinema, mas não em literatura. O ponto alto do livro, entretanto, são os diálogos - com o tempo certo, asseguram boas risadas. E a obra também interessa pela maneira com que os crimes são costurados aos acontecimentos históricos da década de 1930 no Brasil, com aquele sabor de Agosto, do Rubem Fonseca. Há, portanto, boas qualidades n'As esganadas - mas não é um livro que me deixe realizada em toda a dimensão do apetite literário...