LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sábado, 30 de abril de 2011

Expressão de Ernesto





Faleceu hoje o escritor argentino Ernesto Sábato.
Um momento de silêncio para um grande artista, não só das letras. Suas pinturas - de tendência expressionista - são aquele tipo de obra que eu realmente gostaria de ver ao vivo. Aqui, a imagem (ao lado da fotografia do autor) é a de um "retrato" de Dostoievski, feita por Sábato. Quem disse que os escritores devem se conter numa única linguagem?
Adiós, Ernesto! Gracias!

ERRATA - MONSTRA em 15 dias

Errata urgente da postagem anterior: a exposição Monstra não abrirá hoje, mas somente daqui a 15 dias, no sábado dia 14 de maio!
Parece que eu sou "premiada" a cada vez que desconfio de uma divulgação de evento feita por jornais: quando ligo para confirmar, descubro que a data ou o horário estão errados! Pelo menos hoje não cheguei a dar viagem perdida, e espero que nenhum dos internautas que me lê tenha sofrido com a propagação do equívoco, agora devidamente corrigido neste blog.
Esperemos mais um pouco, portanto.
Enquanto isso, vale a pena conferir o 62° Salão de Abril no Centro de Referência do Professor. Fui hoje pela manhã, e posso dizer que foi umas das melhores edições do Salão que já vi. As obras estão quase todas sintonizadas em ótima qualidade. Poderia citar praticamente todos os artistas, mas acho justo realçar aqueles que mais me impressionaram. Logo na entrada, as duas esculturas de Flávio Cerqueira são engenhosas e interessantes: a primeira, de um anão super-homem, é irônica, ao passo que a outra, "Monólogo", tem um travo de solidão que a cor branca e a dimensão da peça ressaltam.
As fotos de Maria Mattos partem de uma ideia maravilhosa e são brincadeiras plásticas que convencem sobre o quanto de ilusório existe no nosso olhar. Uma das imagens da série "No ar" foi a minha preferida de toda a mostra.
Também as fotos de Nati Canto são impressionantemente poéticas. Trabalhadas digitalmente, alcançam um efeito de doce sobressalto.
Marcia Rosolia faz colagem sobre fotos, obtendo um efeito curioso: as duas primeiras são sutis; as outras, mais grosseiras, servem de "explicação" de técnica que nos faz voltar às imagens iniciais, para ver o que antes não percebemos...
A homenagem para Zé Tarcísio foi boa - mas ainda acho que ele tem peças bem mais talentosas do que a série das pedras escolhida.
Ressalto ainda as pinturas de Flávia Metzler, lúdicas e bem realizadas. E os desenhos de Nara Amélia, que vêm em molduras delicadas. Evocam uma atmosfera com segredos de gerações perdidas, codificados na imagem de grupos de bichos feitos em caneta, a surgir detalhados como milagres.
As gravuras de Iuri Casaes também são interessantes, pelo aspecto grotesco. E a intervenção urbana da Ana Tomimori foi, ao meu ver, o melhor exemplo nos vídeos.

Hoje tem MONSTRA!


Hoje, às 16h, haverá a abertura da exposição Monstra, no Sobrado José Lourenço. Já conheço o trabalho desse coletivo de artistas e admiro especialmente as obras do Weaver, da Ise Araújo e do Jabson Rodrigues (que ilustrou o meu Cores de gatos e rosas). Há, portanto, motivos de sobra para ficar entusiasmada: eles são o que há de melhor nas artes plásticas, atualmente - e penso num contexto que ultrapassa padrões geográficos, para fazer tal afirmativa.
As peças estarão à venda, então vou preparada para voltar, ao fim do dia, sabendo que meu apartamento não será mais o mesmo. Amanhã alguma(a) parede(s) pode(m) estar diferente(s)...

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O polígrafo prolixo

A crônica abaixo foi publicada hoje no jornal O Povo e está disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/04/27/noticiaopiniaojornal,2158883/o-poligrafo-prolixo.shtml

O POLÍGRAFO PROLIXO

Aconteceu quando eu estava numa fotocopiadora, inocentemente esperando o material didático que tinha levado para imprimir. De repente, um ex-aluno se aproximou, acompanhado de um amigo que não demorou a se apresentar sob a definição de “escritor”. Ora, para quem gostava de palavras sobre o papel, esse rapaz era singularmente falante – em menos de três minutos, desfiou a própria bibliografia, que ia desde livros técnicos até grossos tomos de “ficção genuína”, conforme ele frisou.

Fiquei sufocada só de ouvir aquela lista. O sujeito era um polígrafo maníaco: escrevia romances, cartilhas, panfletos, sermões, poemas épicos e fesceninos, artigos acadêmicos, diários e e-mails. Arriscava-se também com contos, fábulas, rondós, provérbios, peças de teatro e haicais. Eu estava me sentindo tonta, mas ele continuava falando de seus planos para escrever reportagens, textos policiais, ensaios, abecedários e hagiografias polêmicas. Realmente, ele poderia destruir uma reserva florestal inteira; nenhum papel do mundo seria suficiente para saciar sua compulsão – e, mesmo sem querer, comecei a imaginá-lo dentro de um grande tonel de tinta, caso fosse possível derreter todas as palavras que um dia ele gastou através de canetas ou cartuchos de impressão. Aquilo daria litros e litros de uma substância gosmenta, e ele bem poderia mergulhar no resultado de tamanho desperdício...

Interrompi meu devaneio homicida para perguntar ao tal escritor se ele tinha como meta superar a produção de Simenon. Ele desconversou, com um sorriso amarelo: era evidente que nunca tinha ouvido falar no autor belga, um dos mais prolixos do mundo, com seus quinhentos títulos. Em vez de me responder, o rapaz achou por bem acrescentar que usava um “método de psicografia” para não perder tempo dormindo. Mesmo em descanso, entrava numa espécie de sonambulismo que (conforme suas palavras) era um fenômeno espiritual. Assim, escrevia na fase de sono REM, e costumava acordar com a cama cheia de páginas rabiscadas em letra convulsa, que depois davam um trabalho imenso para organizar.

O polígrafo tinha aberto o leque da cauda, e agora não havia força que pudesse fechá-lo. Eu estudava as possibilidades de fuga, calculando o tormento que ainda teria pela frente. Se ficasse, talvez pudesse desligar o meu botão auditivo, pondo-me a repetir, mentalmente, algumas lições de polonês... Creio que essa seria a única estratégia capaz de me salvar de um derrame naquela hora, mas felizmente as cópias que eu esperava ficaram prontas. Saí correndo da fotocopiadora, após ouvir o refrão apreciativo que o escritor aplicava ao seu mais recente opúsculo. Quando estava na esquina, escutei o seu grito: “Espere! Eu não lhe disse o meu nome!” Não pensei duas vezes e entrei no primeiro táxi que passava.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Kokoschka


A trilogia memorialística do Canetti me trouxe inúmeros aprendizados e, talvez mais do que isso, um verdadeiro mergulho no espírito vienense. Voltei a ouvir Mahler, coisa que não fazia desde a adolescência - e conheci um pouco sobre sua atormentada família: sua filha, Anna (que inspira o último volume, O jogo dos olhos), e sua esposa infiel, Alma. O efeito dessa mulher na sociedade da época foi tão intenso e controverso, que muitos a consideravam uma típica predadora. Assim pelo menos foi para o artista plástica Oskar Kokoschka, que se tornou completamente obcecado por ela e a retratou em muitas obras lindas, na fase em que foram amantes.
Não conhecia a arte desse ótimo expressionista, e virei sua fã.
Agora, minha leitura seguinte, claro, será o Auto-de-fé. Mas depois desse romance vou parar com as conexões austríacas. Tenho de voltar à latinidade: Borges e Cortázar (anunciado na postagem aqui abaixo) me aguardam. Os próximos meses serão de convívio com esses gênios argentinos. Quero estar bem preparada para a primavera em Buenos Aires...

Cortázar



Um trecho retirado de Conversas com Cortázar, livro de entrevistas do E. G. Bermejo:

"Creio que a literatura serve como uma das muitas possibilidades do homem de realizar-se como homo ludens. E, em última instância, como homem feliz. A literatura é uma das possibilidades da felicidade humana. Fazer e ler literatura.
Essa biblioteca que você está vendo aqui me deu milhares e milhares de horas de felicidade. Sou feliz quando escrevo e penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando digo felicidade, não estou me referindo a uma felicidade beata: felicidade pode ser exaltação, amor, cólera... Digamos, potencialização." (p.71)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Abastecimento





O amigo Carlos tem me "abastecido" com periódicas e lindas fotos de gatos! Posto aqui algumas delas, engraçadas e poéticas, e com isso rendo homenagem não somente aos felinos (que nos ensinam sempre sobre beleza e tranquilidade), mas também aos artistas (infelizmente anônimos) que tiveram o poder de capturar esses instantes.

sábado, 16 de abril de 2011


“(...) quando falo, é só de forma diferente que me embrulho no silêncio.”

Herta Müller



quinta-feira, 14 de abril de 2011

Para conhecer

Esta impressionante imagem é de uma escultura de Fritz Wotruba, artista vienense cuja história de vida marca as mais belas páginas d'O jogo dos olhos, último volume da trilogia memorialista do Elias Canetti.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Fora de si

Quando alguém comete um ato hediondo, algo que ultrapassa as fronteiras do suportável, é comum que as pessoas busquem desesperadamente uma razão ou dispositivo capaz de acionar aquela maldade. Precisamos ver o rosto do assassino, revisar sua trajetória em busca de pistas que nos esclareçam. Buscamos rótulos, escolhemos termos como “louco”, “anormal” ou “fanático” – e a mídia estimula essas atitudes, detalhando a biografia do criminoso, subitamente transformado em espetáculo.

Há uma necessidade essencialmente humana nesse esforço – embora também haja muita especulação sangrenta, ligada à simples curiosidade mórbida. Imaginemos, entretanto, que a maioria assiste ao noticiário com estupefação e horror, para depois procurar minúcias do crime na internet, e isso não por prazer, mas por ânsia de explicação. É urgente que o absurdo faça sentido, e para isso são convocados especialistas. Psicólogos, sociólogos, educadores opinam, abrem teorias – e pode ser que depois de um tempo alcancemos não o sossego (impossível diante do episódio), mas um relativo conformismo. As hipóteses – deterministas, patológicas ou espirituais – nos convenceram de certa perspectiva. Um dos rótulos se sobressaiu, apontando o assassino como um ser que esteve “fora de si”, por algum motivo.

Ora, é justamente esta expressão tão usada que me parece um equívoco. Ela indica a irracionalidade, associada à loucura ou a tudo que não pode ser abarcado pela mente normal. Mas, por outro lado, é viável pensar que um matador de crianças que planeja o crime e deixa instruções póstumas estava, ao contrário, bem concentrado em seus objetivos – sejam eles resultado de delírio ou não. Ele estava tão dentro de si, tão voltado para seu ego inflado com visões de grandeza, que não se importou em destruir os outros. Aliás, essa destruição era a forma de exercer seu poder assassino – um ímpeto baseado em covardia óbvia.

No fundo, todo assassino é um vaidoso fatal, alguém que precisa se afirmar através da aniquilação alheia. Não importa que ele aja isolado, movido por “vozes” dentro da própria cabeça, ou integre um grupo doutrinário. Sua impressão de si mesmo o exclui dos demais e o faz pensar que é especial perante a sociedade, um tipo de eleito divino, vítima específica ou vingador imbatível.

Mas o fato é que poucas pessoas, dentro da história do mundo, são relevantes e inesquecíveis. Algumas alcançaram fama por motivos torpes: certos líderes cruéis, por exemplo, jamais serão perdoados. Mas muitos – santos, cientistas ou mestres – foram especiais porque saíram de si em direção à humanidade. São esses os verdadeiros poderosos, os que celebram a vida e a melhoram. Para eles, não é preciso buscar explicação ou significado: sua verdade sempre foi real, não imaginária.


Tércia Montenegro

(crônica publicada hoje na coluna Opinião, do jornal O Povo. Disponível também no portal http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/04/13/noticiaopiniaojornal,2125107/fora-de-si.shtml)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Brueghel



Estas duas imagens do Brueghel, O triunfo da morte e A parábola dos cegos, são comentadas nas páginas que ontem li, do Canetti. A descrição é poderosa, leva ao desejo imediato de conhecer as obras com detalhes. Infelizmente, o que se encontra na internet é coisa desse tipo: imagens em baixa resolução, reduzidas, com os personagens quase invisíveis, mutilados em suas expressões. Será que diante de exemplos como esse ainda se pode dizer que as informações virtuais são suficientes, substituem a experiência ao vivo? Brueghel é o tipo de artista que não se captura fora de uma apreensão real - e para isso, é preciso viajar, encontrá-lo em presença viva. Digo mais: uma viagem se justifica não somente por paisagens e surpresas culturais, mas pelo encontro com peças artísticas. Vou me lembrar para sempre do pequeno Monet que me arrebatou em Lisboa, oito anos atrás, assim como não esquecerei os Van Gogh que vi no MASP, os quadros de Dalí e Magritte e a linda escultura do Boccioni, no museu Peggy Guggenheim, em Veneza... É como se tudo saísse da ficção, das páginas dos livros, e virasse mundo - ou melhor, é como se eu mesma entrasse na ficção por um instante e tivesse um olhar nítido como nunca antes!

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Felicidade demais




Leio estes contos da Alice Munro: é aquela escrita objetiva, no estilo de grande parte da literatura em língua inglesa - mas as situações sofrem reviravoltas boas, que só um escritor maduro arriscaria. Está valendo a pena.
Em outros momentos continuo com o Canetti, agora no segundo volume da trilogia, Uma luz em meu ouvido. Fora essas atrações, estou sem muita novidade. Tenho revisto filmes antigos (neste fim-de-semana, foram os Sonhos do Kurosawa) e fui a duas exposições de arte, no CCBNB e no Sobrado José Lourenço. Gostei muitíssimo d'O Pianista, do Campelo Costa, mas no geral estou funcionando em frequência média, sem grandes arrebatamentos...

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A língua absolvida



Estou lendo agora A língua absolvida, primeiro volume da trilogia autobiográfica de Elias Canetti. É meu primeiro contato com a obra deste autor, de quem antes apenas tinha ouvido falar. Sua narrativa é fluida, sem malabarismos verbais, com ótimas histórias. Também... pode-se dizer que ele foi um privilegiado, pois desde cedo seu aprendizado não encontrou limites. Aos dez anos de idade, já falava com fluência quatro línguas e tinha morado em três países. E isso não era uma exceção para o espírito da época! Creio que no começo do século XX, quando a bestialidade midiática ainda não tinha invadido as mentes, a inteligência era um algo incentivado na maioria dos ambientes. Hoje, ao contrário, parece que as pessoas só admitem ouvir chavões e obviedades. No próprio espaço escolar, é inimaginável que os alunos disputem conhecimentos, nos dias atuais. Querem, ao contrário, nivelar-se em modismos fúteis, e aqueles que demonstram maior sensibilidade ou raciocínio são logo excluídos como "CDFs" - um rótulo de carga pejorativa, quando na verdade a inteligência deveria ser louvada! Sinal dos tempos, talvez... Na época da infância de Canetti, ainda podemos ver uma sociedade que compete por enriquecimento cultural, e as crianças brincam com citações literárias, aprendem latim e hebraico, conhecem canções folclóricas e passeiam por cidades milenares, com consciência do território em que pisam.