LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Fotos do Felipe



O Felipe Abud é o melhor fotógrafo de gatos que eu conheço - embora o conheça de fato indiretamente, através da amiga Carmélia, que sempre me manda as imagens lindas que ele faz. Vale a pena homenageá-lo!

Livro novo à vista!

Queridos amigos,

É com muita alegria que venho informar esta novidade: meu livro novo de contos, O tempo em estado sólido, foi escolhido na seleção de originais da editora Grua, de São Paulo, e sairá no primeiro semestre de 2012. A notícia está disponível no http://colunas.cbn.globoradio.globo.com/platb/tempodeletras/2011/11/26/autores-selecionados-pela-grua-lancam-livro-no-ano-que-vem/
Vocês podem conhecer um pouco da editora pelo site http://www.grualivros.com.br/
Abraços
Tércia

sábado, 26 de novembro de 2011

Storia dell'arte italiana

Semanas atrás, pude frequentar na Casa de Cultura Italiana um curso rápido sobre história da arte, ministrado pela professora Cristina Gervasi. A parte mais empolgante foi certamente a que tratou da contemporaneidade - e isso, não que eu despreze os clássicos - ao contrário! É que, de tanto estudar os antigos, já não havia muita informação nova para mim nessa área. Os artistas atuais, entretanto, não somente trazem propostas insólitas (com certa dose de polêmica, às vezes), como ainda são pouco conhecidos aqui no Brasil. Assim, a grande oportunidade que eu tive para começar a conhecer a obra deles foi esse curso. Compartilho com vocês alguns nomes bem interessantes:
- Oliviero Toscani (é o famoso fotógrafo das campanhas de publicidade da Benetton. Sua página pessoal é http://www.olivierotoscani.com)
-Matteo Basilè (fotógrafo romano que tem um estilo surrealista incrível. Vale a pena ver seus trabalhos em http://www.matteobasile.com/newsite/works)
- Arash Radpour (é um fotógrafo de moda muito inventivo e perturbador. Não achei sua página pessoal, mas há várias de suas imagens disponíveis no google.it)
- Paolo Tamburella (artista multimidiático, tem projetos temáticos que passeiam pelo mundo de um modo criativo. Confira em http://www.tamburella.net/)
- Alessandro Carboni (conheça em http://www.alessandrocarboni.it/)
- Maurizio Cattelan (tem obras surreais também, e muitas irônicas - como a do Hitler de joelhos. A imagem que ilustra esta postagem é dele: uma obra intitulada Not afraid of love)
Claro que ainda há outros inúmeros artistas geniais que (lástima!) permaneço sem conhecer - mas creio que, por enquanto, a obra destes serve como um ótimo alívio da realidade, essa coisa bruta e feia que nos cerca.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Por um mundo de silêncio

Crônica publicada hoje, no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/11/23/noticiaopiniaojornal,2340372/por-um-mundo-de-silencio.shtml

POR UM MUNDO DE SILÊNCIO


            Já sabemos que a vida moderna é incrivelmente barulhenta. Mas como se não bastassem os ruídos de motor e as insistências de buzinas com os quais a maioria das pessoas se acostumou, a tecnologia parece alimentar novos e irritantes sons. São alarmes e guinchos enlouquecidos por garagens e estacionamentos, toques de celular nos estilos os mais absurdos (com músicas toscas, choro de bebê, hinos futebolísticos ou som de derrapagem de pneus), e o curioso é que os proprietários de tais máquinas nunca se constrangem por invadir, com suas explosões sonoras, o que antes era um pacífico silêncio.
            Ao contrário, soa “normal” que alguém se agite e produza ruídos como um frenético, e na falta (ou descanso fugidio) das máquinas, sente-se um desespero por falar, puxar conversa, tossir ou bater o pé, qualquer coisa que ultrapasse o hiato silencioso – sinal de angústia para muitos.
            Talvez os barulhentos considerem o silêncio um tipo de tristeza ou de morte; por isso, disfarçam, produzindo apitos, vozes ou cicios. Tudo vale para espantar o fantasma do vazio auditivo: banda de forró com refrão esganiçado, tv ligada o tempo inteiro, rádio na cozinha, mp3 durante o passeio, “som ambiente” em restaurantes e hotéis... Somos tão bombardeados sonoramente, que nem atentamos mais. Entretanto, mesmo que a percepção momentânea ignore o estresse, o corpo sofre.
            Biologicamente, devemos rejeitar ruídos metálicos, estridentes e artificiais. Não é possível que a pulsação cardíaca se mantenha estável, por exemplo, dentro de um carro em que há diversas sirenes (sensor de velocidade, sensor de ré, paineis falantes etc), até porque cada uma delas parece feita para estourar os miolos como se fossem bolhas. Se alguém fabricasse tais dispositivos com melodias tranquilas, sons de pássaros ou violinos, seria diferente – mas essa ideia é inviável, e sabem por quê? Por que os empresários por trás das máquinas querem, em cada detalhe, nos afastar da natureza e da arte. Um dia não ouviremos mais bem-te-vis ou galos (quantas pessoas ainda os ouvem?) e teremos desaprendido a escutar as águas do mar e o vento nas palmeiras. E hoje a tecnologia, através dos seus usuários invasivos, já nos força a antecipar essa ocasião catastrófica: um futuro em que não teremos de jeito nenhum os sons meigos do mundo.
            Desconfio das pessoas tagarelas, dos inquietos com seus joguinhos que espocam em miniteclados – e detesto sinceramente os fãs de campainhas (o que há de errado com batidas na porta?). Por causa de todos eles, não me desfaço de dois pequenos milagres na forma de esponjinhas discretas: meus protetores auriculares, que escondo sob o cabelo durante reuniões tempestivas ou sempre que preciso me proteger do barulho –  esse lixo invisível de alta frequência.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O conto brasileiro contemporâneo


Cheguei em casa há pouco e fui recebida por uma ótima surpresa postal: exemplares d'O conto brasileiro contemporâneo, na linda edição organizada por Carmen Villarino Pardo e Luiz Ruffato! Um dos meus textos integra esse volume, na companhia de autores como Adriana Lisboa, Bernardo Carvalho, Cíntia Moscovich, Cristóvão Tezza, João Anzanello Carrascoza, Marçal Aquino, Milton Hatoum e Ronaldo Correia de Brito, dentre outros. Só de imaginar que um conto meu está circulando por Santiago de Compostela, fico com uma grande vontade de viajar para lá!

domingo, 13 de novembro de 2011

Os meus ga(ro)tos

De tanto falar nos felinos de outrem, baixou aqui em casa uma ciumeira. Tive que fazer uma sessão-rápida de fotos da gatarada, para uma exposição blogueira. Então, com vocês, os ga(ro)tos daqui de casa, os reis do pedaço, com as respectivas biografias e características temperamentais.
Este é o Gavito; com 10 anos, é primogênito e líder absoluto do lugar. Tem personalidade afabilíssima, gosta de pessoas e é o único que não me faz passar vergonha diante de visitas. É divertido e brincalhão e aceita ser pego no colo como um bebê - por isso, tem de suportar que eu o sufoque diversas vezes por dia (rs).
Apelidos: Gavinho, Gavi, Vitinho, Vito, Vivi.
Voilà Grafite, o negão lindo e manhoso, de 8 anos de idade. Embora a sua cara normal seja séria e ele não se acostume com nenhum ser humano além de mim, devo revelar que seu temperamento é o de um gentleman (afinal, vocês conhecem outro gato que corra para vomitar bolas de pêlo na caixa de areia?). Ele só perde a pose quando entra na sessão-escovada: daí, ele se joga no chão, ronrona alto, vira de barriga pra cima  e pensa que é de novo filhote.
Apelidos: Grafi. Fitinho, Fiti, Grafinho, Pretão.
Gaia é a princesa soberana, que jamais aceitou a presença de outra fêmea em casa - afinal, ela precisa continuar sendo o pomo da discórdia entre os dois persas e não aceita concorrência nesse ramo! Ciumenta ao extremo, ela é meiga e brincalhona; parece uma doida quando se põe a correr atrás de bolinhas ou barbantes. Tem pânico de chuva e ruídos altos, por causa de sua infância traumática: eu a encontrei filhotinha, num dia de tempestade, perdida na academia de yoga que eu frequentava, 7 anos atrás.
Apelidos: Gagá, Lady Gaga, Gainha, Gaiota, Gaiata, A Gata do Faquir.

Os gatos de Patricia

De ontem para hoje, passei bons minutos com a leitura d'Os gatos, da Patricia Highsmith. Eu já procurava há tempos este livro, anunciado mas até então nunca visto, na coleção da L&PM. Ontem finalmente consegui encontrá-lo na livraria - junto com a maravilhosa nova edição dos poemas da Wisława Szymborska (mas esta eu ainda não comecei a ler; estou só curtindo a felicidade clandestina...). O pequeno volume da Patricia traz três poemas (apenas razoáveis), três ótimos contos e um ensaio, além das ilustrações, lindas aquarelas que ela mesma fez, inspirada nos seus siameses. Nesta foto, conseguida na internet, ela posa com o seu Ripley-da-vida-real. Abaixo, reproduzo para o(a) leitor(a) gatófilo(a) algumas passagens do ensaio sobre felinos:
"Gosto de gatos porque eles são elegantes e silenciosos, e têm efeito decorativo; uns leõezinhos razoavelmente dóceis, andando pela casa. (...) Raymond Chandler gostava de ter um gato roliço junto dele, ou sobre a escrivaninha. Simenon é frequentemente fotografado com algum de seus gatos, em geral um gato preto. Os gatos oferecem para o escritor algo que outros humanos não conseguem: companhia que não é exigente nem intrometida, que é tão tranquila e em constante transformação quanto um mar plácido que mal se move. (...) Um gato faz de um lar, um lar; com um gato, um escritor não está só e, no entanto, está sozinho o bastante para trabalhar. Mais do que isso, um gato é uma obra de arte ambulante, dorminhoca e em constante transformação. (...) Na verdade, ninguém faz uso de um bom quadro na parede, ou de um concerto de Beethoven, e, no entanto, eles podem ser uma necessidade na existência de um indivíduo."

sábado, 12 de novembro de 2011

Sławomir Mrożek


Estive lendo recentemente os ótimos contos deste autor polonês, que não conhecia até encontrar uma edição em língua espanhola de El Árbol. Como suspeito de que não existem traduções para o português deste livro, aventuro-me no gesto de eu mesma traduzir alguns destes contos. Escolho os mais curtos e espirituosos, para a diversão de vocês. Eis o primeiro presente de Sławomir Mrożek:




IMMANUEL


– Que é isso? – exclamou o produtor depois de dar uma olhada na primeira página do roteiro – Está de pé e pensa? E por que não de noite?
– Pensa, porque assim começa tudo. E tem que ser de noite, porque ele deve ver as estrelas. No livro está claramente: “O céu estrelado sobre a minha cabeça e a lei moral no fundo do meu coração.”
Tratava-se de uma adaptação cinematográfica da Crítica da razão pura de Immanuel Kant.
– Está de pé! Mas se numa película tem que haver movimento, é você um principiante ou o quê? Que caminhe, ao menos; ou melhor, que corra, sem fôlego, porque talvez alguém o persiga. Isso dá dinamismo e desperta o interesse do espectador. Pode ser de noite, se quiser.
– Mas se corre, não pensa, porque não tem tempo.
O produtor sumiu nos próprios pensamentos, como Kant fizera nos outros tempos.
– Já sei. Mudaremos a situação. Kant está de pé na beira de um bar, com a barba por fazer, porque tem problemas. Vamos ver, vamos ver. Por que usa peruca? Era calvo ou o quê?
– É um filme de época, histórico.
– Você ficou louco? Quer fazer Os três mosqueteiros ou o quê? Vamos transportá-lo para os tempos modernos. Noite, num bar, vários tipos ao redor, compreende? A vida em si.
– Mas o que acontece com as estrelas?
– Muito simples. No bar existe um televisor, precisamente na Guerra das galáxias. Kant está assistindo, ou seja, vê as estrelas.
– E a lei?
– Que lei?
– “A lei moral no fundo do meu coração.” Ele escreveu isso claramente.
– Sem problema. O sheriff entra no bar e Kant sente medo porque não tem a consciência limpa. O melhor será a droga.
Folheou umas quantas páginas do roteiro.
– “Imperativo categórico?” O que é isso? Algo relacionado com o imperalismo? Não estaria mal.
– Não sei, mas me parece que se refere a se estar obrigado a fazer algo.
– Claro que está obrigado a fazer algo. A mudar este roteiro. Aqui Kant diz: “Este é meu imperativo categórico”, imediatamente depois de lhe ter dito que não se casará com ela. Isso não pode ser; está muito frouxo.
– Por que muito frouxo? Mas se ela o interessa.
– Mas o sexo normal já não interessa a ninguém. Kant tem que ser ao menos bissexual. Acrescentaremos um sobrinho.
– Por que um sobrinho?
– Porque será menor de idade. Kant é seu tio e, de quebra, teremos também um incesto. Agora tudo se encaixa: o sobrinho é um drogado, Kant lhe proporciona a droga e por isso tem medo do sheriff.
Terminamos a película em duas semanas. Chamava-se Meu nome é a existência, porque desde o princípio se tratava de uma película intelectual, por isso nos baseamos em Kant. Mas apesar disso tivemos um grande êxito de público. A popularização da cultura começa a valer a pena.

Sławomir Mrożek


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Conversas com Woody Allen

Terminei de ler este livro de entrevistas, organizado por Eric Lax, ao longo de mais de três décadas de conversas com Woody Allen. É uma obra apaixonante, que revela um artista incansável, com um raro senso de dimensão das coisas e dos valores devidos (à arte e à própria vida). Selecionei alguns trechos para ilustrar isso:
"À noite, quando vou dormir e encosto a cabeça no travesseiro, ou quando ando pela rua, gosto de ficar pensando em ideias para histórias. Estou sempre pensando em novas tramas. Eu faria qualquer coisa para evitar aquele momento horrível de 'O quê que eu vou fazer agora?'. (...) é nesse intervalo que um escritor pensa em mudar de profissão." (p.38)
"Infelizmente, nós temos de escolher a realidade, mas no fim ela nos esmaga e decepciona. Minha visão da realidade é que ela sempre foi um lugar triste para estar [ele faz uma pausa, solta uma pequena risada], mas é o único lugar onde você consegue comida chinesa." (p.42)
"Sem dúvida, comédia é mais difícil de fazer do que coisa séria. Também não tenho nenhuma dúvida de que a comédia tem menos valor do que a coisa séria. Tem menos impacto, e acho que por uma boa razão. Quando a comédia aborda um problema, ela brinca com ele, mas não resolve. O drama trabalha a questão de um modo emocionalmente mais satisfatório. Não quero parecer brutal, mas existe algo de imaturo, de segunda linha, em termos de satisfação, quando se compara a comédia com o drama. E vai ser sempre assim. A comédia nunca, nunca terá a estatura de A morte do caixeiro-viajante, ou de Um bonde chamado desejo, ou de Longa jornada noite adentro. Nenhuma dessas, nem a melhor delas. Se você pega Escola de escândalo, As rãs, Pigmalião, A mulher do campo, Do mundo nada se leva, Nascida ontem, A primeira página, Tempos modernos, Diabo a quatro, A general - e essas são as melhores de todas -, elas nunca terão o impacto de O sétimo selo, O encouraçado Potemkin e Ouro e maldição, porque na comédia existe alguma coisa menos satisfatória, mesmo sendo mais difícil de fazer. Ao dizer isso, falo só por mim." (p.102)
"Sempre espero que o público vá gostar do filme, mas jamais posso cair na armadilha de fazer algo que não seja exatamente o que eu quero, só para ser apreciado. Melhor não ser apreciado, mas ser bom. Melhor tentar crescer e falhar de maneira humilhante do que jogar no que é certo ou, pior, fazer troca de favores." (p.105)
"Não tenho grande respeito pelas instituições. Realmente acho que o traço mais marcante da existência humana é a desumanidade do homem com o homem. Olhando de longe, se fôssemos observados por gente no espaço, acho que a conclusão seria essa. Não acho que eles ficariam deslumbrados com a nossa arte ou com tudo o que realizamos. Acho que ficariam de certa forma assombrados pela carnificina e pela burrice." (p.122)
"(...) não existe honra que um ser humano possa me dar que signifique alguma coisa para mim. Para mim, receber alguma cosia que tenha significado para mim exigiria um universo diferente. (...) os prêmios são feitos para juntar poeira; eles não mudam a sua vida, não afetam sua saúde de forma positiva, nem a sua longevidade ou a sua felicidade emocional. Os lugares que você quer consertar na sua vida, ou ajudar; o ajuste e o conforto de que você precisa, não são tocados pelas grandes honras do mundo." (pp.162-4)
"(...) o único conselho em que posso pensar é que só o trabalho conta. Não leia a seu respeito, não tenha grandes discussões a respeito de seu trabalho, simplesmente mantenha o nariz enfiado do trabalho. (...) Quanto menos você pensar em si mesmo, melhor. (...) Apenas trabalhe bem, não perca tempo pensando em mais nada, não se junte ao circo do show business, não preste atenção nas distrações que as pessoas lançam na sua direção, e tudo o mais se encaixa no devido lugar. (...) À medida que fico mais velho, a palavra 'legado' sempre aparece, e pessoalmente não estou nem um pouco interessado em legado, porque acredito firmemente que, quando se morre, pôr o seu nome numa rua não ajuda em nada o seu metabolismo - eu vi o que aconteceu com Rembrandt, Platão, e toda essa gente ótima. Eles simplesmente jazem lá. (...) O grande Shakespeare não está nada melhor do que algum vagabundo sem talento que escrevia peças na Inglaterra elisabetana e não conseguia quem produzisse, e quando produziam todo mundo fugia do teatro. Não que eu ache que seja totalmente desprovido de talento, mas não tenho talento suficiente para fazer meu sangue circular depois que o rigor mortis se instalar. Então legado não importa nada mesmo. O melhor jeito de dizer isso foi com a minha piada: 'Em vez de sobreviver nos corações e mentes dos meus semelhantes, prefiro sobreviver no meu apartamento'." (pp.463-4)
"Se o mundo inteiro está celebrando esta música ou aquela peça, você precisa continuar fiel às suas convicções, por mais adversas que sejam. Vai descobrir que não é tão difícil. Se eu gosto de alguma coisa ou de alguém, não me importa a mínima se ninguém mais gosta, e se eu não gosto, não gosto. (...) Não vou mudar o meu estilo ou o meu assunto porque alguém me critica. Não conseguiria, mesmo que quisesse. (...) O trabalho existe independentemente de tudo o que falam a respeito dele. Se a coisa é boa, continua boa apesar de todo o palavrório contra ou a favor. E se não é boa, vai se dissipar, por mais popular que possa parecer no momento." (pp.465-6)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Por incrível que pareça

Esta minha crônica foi publicada hoje, no jornal O Povo. Está disponível também no endereço http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/11/09/noticiaopiniaojornal,2331474/por-incrivel-que-pareca.shtml



POR INCRÍVEL QUE PAREÇA

            Um narrador é, antes de tudo, alguém que gosta de histórias, e gosta tanto que não pode viver sem inventá-las. Ora, nestas crônicas aqui publicadas, um dos meus grandes prazeres é ultrapassar a própria criação do fato literário, para transbordar pelos fatos reais. E isso acontece sobretudo quando vocês, leitores, dedicam um tempinho para me enviar mensagens, contando suas experiências particulares, compartilhando situações únicas. Eu, então, entro na posição de espectadora da história, tão maravilhada quanto diante de milagres – sim, porque há narrativas que parecem mágicas, absurdas ou inexplicáveis.
            Na última quinzena, publiquei um texto sobre medicina, mais especificamente sobre doenças de nomes estranhos ou características bizarras. A reação foi imediata: uma dúzia de leitores me escreveu, detalhando o tema em vários outros exemplos a partir de vivências pessoais. Não terei espaço suficiente para mencionar todos os relatos, portanto (sem desmerecer nenhum) seleciono aqueles que me pareceram realmente assombrosos.
            Um leitor menciona a patologia mental que vitimou certo parente seu. Conforme diz, os médicos nunca chegaram a um diagnóstico definitivo, mas parece que o homem sofria de um mal esquizofrênico, que o levava a dar nome próprio a cada parte de seu corpo. Assim, o olho direito chamava-se, digamos, Carlos; o esquerdo, José; a sobrancelha esquerda era Maria; a direita, Josefa. Após a longa tarefa de batismo, feita com uma simples lista, o doente passou ao projeto – muito mais demorado – de memorizar cada um daqueles nomes, com suas respectivas identidades. Finalmente, conseguiu decorar tudo, a ponto de gastar mais de meia hora quando se apresentava, recitando todos os nomes e localidades corpóreas, como quem resgatasse uma genealogia que lhe garantia status e personalidade. Quando esse homem morreu num acidente de automóvel, felizmente o obituário limitou-se a citar seu nome de registro – senão, era de se pensar que ali teria morrido uma multidão.
Outro caso estranho é o do leitor que afirma ter uma rara doença conhecida como Retardo Sensitivo. Ela consiste num defeito na medula espinhal e em certas glândulas do corpo que começam a “atrasar” as sensações de dor ou prazer. Assim, por exemplo, pode-se queimar a mão e sofrer os martírios do fogo apenas horas depois. O sujeito relatou a situação embaraçosa em que se viu quando, durante uma audiência no fórum, experimentou o orgasmo que deveria ter sentido na véspera: assim, não somente a doença o tornava um amante frio, como agravou sua posição de réu, num processo trabalhista.
            Há episódios envolvendo moléstias como o reumatismo do deserto, a goma do cérebro, a hiperceratose em mosaico e a hiperemia passiva – mas agora basta de falar em doenças! Estamos num jornal, e certamente o leitor ainda terá, nestas páginas, muitos outros assuntos tristes...

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

domingo, 6 de novembro de 2011

As esganadas


 Li, neste fim de semana, As esganadas, do Jô Soares. É uma boa leitura de interregnos: rápida, com os ingredientes policialescos de praxe e temperada de humor. Porém, não me satisfez de todo - o livro é escrito com a agilidade de um romance de suspense, mas a pressa é tanta que derrapa em inverossimilhanças. Por exemplo, como o magro assassino Caronte consegue suspender com tanta facilidade os corpos de suas vítimas obesas? Como ele é proprietário de uma funerária e de um matadouro sem despertar suspeitas? E, principalmente, como é um excelente músico, um embalsamador de profissão, um ótimo cozinheiro e um conhecedor de artes plásticas - tudo, ao mesmo tempo? Os personagens são rasos e caricatos - e acredito que uma caricatura, que é coisa essencial para o humor ( não esqueçamos que Jô Soares é, antes de tudo, um comediante), pode, e até deve, ser profunda.
A linguagem é outra decepção. Claro que não chega a ser ruim ou desleixada (a inteligência e erudição do autor inviabilizam esta hipótese), mas é objetiva demais, roteirística e saltitante em torno dos fatos, sem pretensões estéticas. Às vezes, abundam os adjetivos com intenção de paródia - e talvez o efeito fosse curioso numa narração in off de cinema, mas não em literatura. O ponto alto do livro, entretanto, são os diálogos - com o tempo certo, asseguram boas risadas. E a obra também interessa pela maneira com que os crimes são costurados aos acontecimentos históricos da década de 1930 no Brasil, com aquele sabor de Agosto, do Rubem Fonseca. Há, portanto, boas qualidades n'As esganadas - mas não é um livro que me deixe realizada em toda a dimensão do apetite literário...