LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

o remorso de baltazar serapião

 


Este é o segundo livro que leio de hugo mãe - e decididamente o começo é bem mais espinhoso do que o início d'a máquina de fazer espanhóis. Demora um pouquinho para a gente se acostumar à linguagem, roseana e - problema para os que têm mania de realismo - inverossímil, uniforme entre os personagens, com uma menor densidade poético-filosófica, se comparamos com a máquina. Mas todas essas diferenças são vantajosas para o autor, porque provam o seu ecletismo, a sua capacidade de transcender aquela afirmação que diz que todo escritor escreve sempre o mesmo livro, disfarçado. Com hugo mãe, isso não acontece. A trama d'o remorso é medieval e fantástica, sem a atmosfera lírica que vemos n'a máquina. Aqui, ao contrário, a brutalidade do sexo e da violência caminham junto pelos meandros de assombro e feitiço. Há momentos em que o estômago se revira, diante de tantos maus tratos que sofrem as mulheres desta história. Veja-se o trecho abaixo, por exemplo:

"e, quando a ermesinda veio, entrou no nosso lado da casa, solta das demoras de dom afonso, preparada para se explicar, sabia eu, e surpresa com a minha aparição gaguejou algo que não ouvi, tão grande foi o ruído de minha mão na sua cara, e tão rápido lhe entornei o corpo ao contrário e lhe dobrei o pé esquerdo em todos os sentidos. que te saiam os peidos pela boca se me voltas a encornar, definharás sempre mais a cada crime, até que sejas massa disforme e sem diferença das pedras ou das merdas acumuladas, e coisa que te entre pelas partes há de cair e cozinhar-se para jantar. que em verdade, se filho algum lhe saísse de um homem que não eu, haveria de servi-lo ao jantar para a sua própria boca. e assim ficou revirada no chão, esfregada de dores corpo todo, a respeitar-me infinitamente para se salvar de morrer, e como me deitei fiquei, surdo de ouvido e de coração, que o amor era coisa de muito ensinamento. que pena se estropiasse tão nova e depressa como foi chegada à vida do casamento. como eu preferiria que se mantivesse perfeita, para num todo me atrair de fantasias. mas poupá-la da morte era o único que me permitia, tão louco de paixão estava, tão grande amor lhe tinha, não poderia matá-la, de outro modo acabaria também de remorsos." (p.53)

Se um grande artista é aquele capaz de manobrar o seu espectador para que sinta as emoções que deseja lhe incutir, merece reverência hugo mãe, pois de um livro para outro nos oferece as mais díspares sensações que a palavra pode trazer.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Agnès Varda

Vi As praias de Agnès Varda, lembrando da primeira vez que ouvi falar nesta fotógrafa e cineasta belga. No documentário Janela da alma, ela aparece comentando como decidiu filmar, muito de perto, o corpo de seu amado Jacques Demy, que na época tinha uma doença terminal. Nunca esqueci a expressão marcante desta mulher, apaixonada pelo companheiro a tal ponto que apenas a arte poderia resgatá-la de sua perda - e o olhar, a filmagem do olhar quase microscópico, era a sua tentativa de não submergir na dor completa.
Neste filme As praias..., mais recente e de sua autoria, Varda faz um resgate biográfico de 80 anos, mostrando como uma identidade se transforma e circula ao longo de descobertas mas, ainda assim, permanece essencialmente a mesma.

 Na imagem acima, como não poderia deixar de ser, Agnès aparece com sua gata, Zgougou.

domingo, 22 de janeiro de 2012

O riso de Isak

 Terminei de ler Anedotas do destino, da Karen Blixen (livro que tem o lindo e impecável conto "O mergulhador"). Impregnada pelo desejo de submergir ainda mais no universo desta autora, aproveitei para ler, como arremate, a entrevista que ela concedeu à Paris Rewue, quando se achava viajando pela Itália. Pois não é que em determinado momento o repórter questiona a respeito do humor nos contos de Karen - e ela exulta pela boa percepção? Assume que seus textos têm, quase todos, um traço de comicidade e reforça o fato dizendo que Isak (o nome que ela escolheu para assinar vários de seus livros foi Isak Dinesen) significa riso. "Provavelmente em dinamarquês" - responde-me o amado, quando lhe comento esta curiosidade. Eu não deixo por menos: Sendo assim, Kierkegaard deve significar algo como "comédia de costumes" - digo, e os dois rimos à vontade, unindo estes dois dinamarqueses de áreas tão diversas, porém nem por isso distantes...
Cenas do cotidiano à parte, fiquei com a pulga na orelha. Não percebi o tal riso nas Anedotas, nem n'A fazenda africana. Pode ser algo subliminar ou sutilíssimo (e tratarei de comprovar isso lendo em breve mais histórias da K.Blixen). Mas pode ser também um riso culturalmente intransferível - e essa perspectiva me deixa melancólica de perda -, ou pode acontecer de o repórter ter feito uma pergunta tão disparatada, que Karen ironizou com uma resposta refinada, criando, naquele instante, o grande riso de Isak...

A lua vem da Ásia & A música segundo Tom Jobim

Neste fim-de-semana tive ótimas diversões culturais - dentre elas, destaco o monólogo do Chico Díaz sobre o texto do Campos de Carvalho, n'A lua vem da Ásia. A peça é muito boa, embora no começo caia em certa monotonia: para quem conhece o livro, esta parte quase não ultrapassa uma recitação. Entretanto, quando o ator se desprende dos objetos cênicos da primeira parte, seu trabalho corporal se intensifica e se mostra em toda a expressividade. O final é impecável, com uma imagem lindíssima.

Recomendo também o documentário A música segundo Tom Jobim, que estreou recentemente. O único problema está no fato de que os artistas surgem e se vão da tela sem que seus nomes apareçam (são citados apenas nos créditos finais), e isso dá margem a que, num cinema, as pessoas fiquem aos cochichos, tentando adivinhar de quem se trata. Resultado: ninguém escuta nada por inteiro, com a fruição devida - e claro que há os mal educados, que partem para conversas inteiras durante o filme, como se estivessem num barzinho com música ao vivo. Vários "psssttt!!!" tiveram que acontecer hoje, por exemplo, para que uma obstinada velhinha tagarela calasse o bico. Apesar disso, o documentário vale a pena: nunca é demais rever Elis e Tom no dueto de "As águas de março" e - como curiosidade - há momentos engraçados, como o de Carlinhos Brown cantando "Luíza" num figurino completamente desconectado com a melodia...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Festival de cinema polonês

Janeiro trouxe de volta a série polonesa Primeiro ministro para o Eurochannel. Como eu já tinha visto uns poucos capítulos esparsos no ano passado, resolvi agora entrar no ritmo regular, principalmente para praticar a audição em polonês. Pois ontem, quando eu estava acompanhando o episódio, descobri pelas propagandas que neste mês o canal está com um festival de filmes da Polônia, todos inéditos para mim! A estreia (ontem mesmo) foi com "Różyczka", A pequena Rosa ou Rosinha, uma história de amor e traição (política e sentimental) na época do domínio comunista. O diretor é Jan Kidawa-Błoński, e nesta imagem veem-se dois dos atores principais: Robert Więckiewicz e Magdalena Boczarska.

Quem quiser conhecer mais do cinema polonês para além de Wajda pode agendar os próximos filmes: General Nil (dia 23, às 20h - horário de Fortaleza), Pitbull (dia 26, às 17h), Quanto pesa o cavalo de Tróia? (dia 29 às 21h) e A canção de ninar (dia 30 às 20h). Eu espero ver todos...

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Decepção de leitora

 Sim, meus caros, a decepção do leitor é uma coisa temível! Nenhum escritor pode subestimá-la - e quando digo escritor, envolvo neste conceito as editoras e os tradutores também, porque às vezes a culpa vem de territórios secundários à criação original. No caso da minha decepção de agora, não sei ao certo onde se situa a origem do problema, mas suspeito que seja na autora mesmo, Alice Munro, que no ano passado conheci através do livro Felicidade demais. Ora, este volume de contos me agradou muitíssimo, lembrando a interessante atmosfera que vivi ao ler Sinistros com fogo, do David Means. Já estava eu pronta a me tornar leitora fiel, quando experimentei Ódio, amizade, namoro, amor, casamento, o primeiro livro da Alice Munro editado no Brasil. Que desgosto! Eu me arrastei pela maioria dos contos, virando as páginas somente pelo resquício de gratidão que devia ao Felicidade demais - mas não havia, neste novo caso, nenhuma história que realmente valesse a pena, pela linguagem ou enredo. Se o propósito da autora foi patinar na monotonia e na desilusão (desiludindo também os leitores), ela alcançou pleno êxito! Terminei o volume disposta a não arriscar de novo - afinal, os escritores não deixam de funcionar como pessoas, dentro de relacionamentos: quando decepcionam, é difícil confiar novamente. Talvez somente com os clássicos aconteça a perfeição: eles sempre são encantadores e insuperáveis, e lê-los jamais pode trazer o risco de perder tempo...

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

As resoluções

Caros amigos,

Se puderem, confiram abaixo minha crônica publicada hoje. Está disponível também no meu blog http://literatercia.blogspot.com/ e no site do jornal O Povo: http://www.2011.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/01/18/noticiaopiniaojornal,2375614/as-resolucoes.shtml

                                                     AS RESOLUÇÕES

      Um amigo me pergunta quais as resoluções que estabeleci para 2012. Pois bem: antes que comece a revelar planos impublicáveis, acho que o tema merece uma digressão.
       É comum que as pessoas sintam prazer em planejar, elaborar roteiros para os próprios dias. Listar os desejos pode trazer uma satisfação tão grande que em alguns casos até substitui os objetivos a serem alcançados. Assim, certos indivíduos têm uma força insuperável na elaboração dos sonhos. São, por exemplo, capazes de organizar com detalhes uma viagem – pesquisam preços de passagens, hotéis, passeios... mas nunca viajam de fato. Os planos bastam para esgotar suas perspectivas e, de algum modo, compensam sua falta de coragem.
       Há também os que planejam sem qualquer intenção de cumprir. Avisam aos familiares que agora é sério: a partir de janeiro, não bebem mais, nem fumam. Prometem de tudo, apenas para ouvir os aplausos com refrões do tipo “Até que enfim” ou “É isso aí!”. Mas basta caminhar pelas calçadas na primeira quinzena do ano para encontrar os recaídos.
Boa parte da energia de renovação que se convenciona para a época do ano-novo é completamente ilusória. Basta pensar no quão diferente seria a sensação da passagem de datas, se usássemos um calendário chinês ou islâmico, ou se no dia 31 de dezembro estivéssemos cruzando o globo, dentro de um avião. No entanto, mesmo com essa consciência de que os pontos cruciais são relativos, ninguém deixa de ouvir os profetas na televisão, cheios de colares, certezas e mandalas. Se uma pessoa decide passar o réveillon dormindo, como eu tantas vezes fiz, é vista como uma exótica profana.
       Todavia, com ou sem datas marcantes, é preciso ocasionalmente traçar decisões. Eu esboçaria dezenas, mas prefiro fazer uma triagem e chegar a uma única meta. Alguns propósitos não dependem de mim, de forma que é inútil desejá-los; outros são viáveis, mas aborrecidos ou complexos demais; outros não me interessam. Sobra apenas um anseio, um objetivo para a vida inteira. A lentidão – que para mim se torna uma paradoxal questão de urgência – é o que mais desejo. Um ritmo lento para saborear a rotina, sem desespero ou solicitações frenéticas.
        Estou convencida de que a calma é um degrau para a sabedoria (que deve ser uma escada bem longa). Quem pensa o contrário, que responda: alguém já viu o Dalai-Lama em disparada pelos caminhos tibetanos, afobando-se para não chegar atrasado?

                                              Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

sábado, 14 de janeiro de 2012

Outro conto do Sławomir Mrożek

Não, amigos, eu não estou de férias - pelo menos, não completamente. O curso intensivo de polonês, correspondente ao 4° semestre, tem ocupado minhas tardes, e no restante do tempo sempre há muito o que fazer. O motivo para eu ainda não ter publicado nenhuma crônica este ano foi outro: o texto estava prontinho para o dia 4, mas o famoso 3 de janeiro em nossa cidade (com boatos, pânicos e verdades em torno da greve - ou motim - dos policiais) fez com que o jornal pedisse o espaço da minha coluna para uma cobertura específica. Então, adiamos a crônica estreante de 2012 para a quinzena próxima. Basta aguardar um pouquinho mais; nesta quarta-feira já teremos o texto saindo. E, enquanto a ocasião não chega, aproveito a folga do sábado para lhes traduzir (do espanhol) mais um conto do livro A árvore, do Sławomir Mrożek.
 NÓS DOIS

 Cruzei no parque com um amigo de infância. Desde nosso último encontro se haviam passado oitenta anos.
- Tens um aspecto estupendo! - exclamei ao vê-lo - Não mudaste nada.
- Não é verdade? Tenho que reconhecer que estou bem conservado. E tu?
"Melhor que tu, velho caduco" - pensei - "É difícil acreditar que temos a mesma idade. Eu continuo jovem, enquanto que a ti dá pena ver-te."
Em vez disso, respondi em voz alta:
- Pois estou ficando velho.
- Estou vendo; conta-me!
Sua alegria me roubou o desejo de continuar me fazendo de hipócrita. Ao fim e ao cabo, ele tinha de me pagar com a mesma moeda.
- Para quê? De toda forma, não acreditarias.
- Como não? Vamos, fale, que te escutarei com prazer.
"Mas que imbecil" - pensei - "No lugar de adivinhar que minto só por cortesia, levou os meus elogios a sério e ainda por cima exige que lhe explique minha suposta velhice, eu, que em comparação com ele estou feito um rapaz. Será que não se dá conta da diferença entre nós? Que imbecil e arrogante."
- Bom, parece que estou ficando um pouco ruim do ouvido.
- Que quer dizer "um pouco"?
- Quê? Fala mais alto, que não te ouço.
- Bem, está bem! - esfregou as mãos - E o que mais?
- Bom, creio que enxergo mal.
- Não me diga! Muito mal?
Seu entusiasmo não me agradou nada.
- Mas apenas às terças e sextas.
- Isso vai passar, já verás como vai passar e às terças e sextas também enxergarás pior. E o coração? E o fígado? Talvez uma ciática? Ou dor nos ossos? E o estôma...?
Aqui se interrompeu, porque lhe caiu uma perna. Eu me inclinei para pegá-la. Senti um rangido na coluna vertebral, mas o que não se faz por um amigo?
- É tua? - perguntei, estendendo-lhe a extremidade.
- Minha? Ah, sim, é possível, com efeito.
- Assim me pareceu.
- Às vezes ela cai, não tem importância.
- Pegue, pode ser útil.
Nesse momento me caiu o braço, o da mão com que segurava sua perna. Que má sorte que ocorresse isso justo naquela hora! É verdade que às vezes me acontecia, mas geralmente sem testemunhas.
Ajudando-nos mutuamente, colocamos nossas correspondentes extremidades e nos sentamos num banco próximo. Não sei por que, mas já não tínhamos vontade de falar. Contemplamos a distância.
Uma mosca pousou na minha calva; quis afugentá-la e me dei um chute na cabeça.
Isso queria dizer que agora tinha a sua perna no lugar do meu braço. Ao que parecia, nos tínhamos equivocado na montagem.
Quis dizer algo a respeito, mas ele havia adormecido. O sol da tarde esquentava agradavelmente, e a mim também pesaram os olhos.
"Eu lhe direi quando despertar".
E eu também dormi. Sonhei com nossa infância comum.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Elas também amavam gatos

Por extensão das minhas leituras do momento, sou levada a conhecer a obra de algumas artistas plásticas da época surrealista, principalmente, e - adivinha? Elas também amavam gatos! É o que percebo por trabalhos que encontrei na internet. Confiram, por exemplo, esta fotografia tirada por Meret Oppenheim (que na verdade ficou famosa pelos objetos conceituais impactantes que elaborou, como a xícara peluda e o par de sapatos altos servido em travessa, no feitio de uma ave com as asas para cima).
Uma pintura delicada e poética de Leonor Fini comprova a mesma admiração por felinos - vejam o quadro abaixo:
 
Leonora Carrington (que não deve ser confundida com Dora Carrington) posou para a foto acima com um companheiro típico, enquanto que Frida Kahlo, já se sabe, convivia com muitos bichos e, portanto, não faltaria um gato em suas pinturas - como neste autorretrato de natureza dolorosa e bruta.
O que se conclui desse rápido passeio temático? Gato é boa companhia não somente para escritores. Entre pincéis e telas, ele também se sente muito à vontade...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Duchampianas

Comecei o ano impregnada de artes plásticas - desta vez, com Marcel Duchamp. Nas horas livres desse aprendizado, escrevo e tento organizar a papelada para o próximo semestre. Tenho muitos projetos e presságios, como sempre. Procuro não perder o foco - e talvez o melhor seja adotar a postura do "mestre" M.D, no que concerne à beleza da indiferença.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012