LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Os esportes impossíveis

OS ESPORTES IMPOSSÍVEIS


Se hoje gasto pouco tempo com exercícios físicos, houve uma época em que eu era sedentaríssima. Quando lecionava em colégios, tinha de trabalhar tanto, e num ritmo tão alucinado, que não me restavam forças para qualquer movimento nas horas vagas. Eu tentava me iludir, acreditando que o desgaste da profissão queimava calorias – mas o fato é que bater palmas (para pedir silêncio aos alunos), andar para lá e para cá durante as aulas, gesticular e escrever na lousa não são um programa de exercícios completo. Como resultado, constantemente eu adoecia, sentia-me exaurida e pálida, enquanto ativava a imaginação (ao menos, essa!) para pensar nas modalidades esportivas que jamais conheceria.
Via-me com equipamentos de alpinismo, esqui ou mergulho, e às vezes inventava a sensação de lidar com bolas de tênis, vôlei ou basquete. Nos dias mais cinzentos, desejava patins para dança no gelo. Gostava especialmente da ideia de me tornar amazona, galopando por hípicas intermináveis – ou, talvez, eu pudesse ter sido uma ginasta, flexível e rápida. Todas essas versões utópicas de minha identidade eram motivadas por atividades físicas que nunca tive.
Mas não pense o leitor que foram apenas esportes de inverno ou caros que me fugiram do alcance. Um simples passeio de bicicleta ainda é para mim algo inviável! Minhas intenções de equilíbrio são sempre vencidas pela atração gravitacional, e por mais que eu me esforce não há jeito. Já me conformei com a hipótese de um carma ou maldição – até porque outro dia sonhei que de novo nascia, e o médico segurava minhas perninhas de bebê e fingia dar umas pedaladas. Depois ele ria como um psicopata, dizendo: “Rá-rá-rá, essa aqui nunca vai aprender!” Classifiquei a imagem como sonho, mas agora estou pensando se não sofri uma regressão e recuperei uma incrível memória dos tempos de infância...
De qualquer modo, se hoje eu pudesse escolher, de imediato me entregaria à esgrima – pelo prazer de usar máscara, luvas e colete protetor. E erguer um florete, acima de tudo: palavra que é delícia e perfume desde os tempos em que li “O chamado”, da Lygia Fagundes Telles. Nesse texto, a escritora (que se formou em Educação Física) fala da disciplina e da rapidez que o esporte lhe ensinou. Porque a esgrima – exatamente como a ficção – consiste em avançar veloz, para atingir um coração exposto.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/02/29/noticiasjornalopiniao,2792593/os-esportes-impossiveis.shtm)

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Daytripper

Maravilhosa, a HQ dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá. Uma história contada de modo interessante, com traço e cores excelentes, Daytripper faz a gente pensar nas inúmeras oportunidades que surgem e escapam, ao longo de uma existência.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Sábato

Trechos de El escritor y sus fantasmas, do Ernesto Sábato:

"La condición más preciosa del creador. El fanatismo. Tiene que tener una obsesión fanática, nada debe anteponerse a su creación, debe sacrificar cualquier cosa a ella. Sin ese fanatismo no se puede hacer nada importante." (p.18)

"La profesión de escritor tiene un lado penoso, que consiste en que el trabajo lo obliga a uno a mezclarse con una serie de literatos." (p.33)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Para brincar o carnaval

Brincadeiras como essa acontecem o dia inteiro, na casa de quem tem gatos. Em época de carnaval, lembre que confetes, cordões e bolinhas fazem a alegria do bloco felino!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

As profissões provisórias

          Acontece de eu encontrar um ex-aluno e receber aquele cumprimento alegre, com a pergunta clássica: “Ainda está ensinando?” Tenho vontade de responder algo disparatado – pois será possível que as pessoas encarem o magistério como se fosse uma espécie de intervalo ou preparação para outra carreira? Claro que esse tipo de indagação revela um conceito sobre os professores. Afinal, ninguém pergunta a um médico ou engenheiro se eles prosseguem com seu ofício... Entretanto, para além do problema cultural, de uma maneira remota a curiosidade desse aluno não é de todo injusta. Muita gente muda de profissão drasticamente, sem apego nenhum à rotina ou às características do emprego. São os aventureiros profissionais, que descartam ocupações num rodízio frenético, nunca se ajustando ao serviço – e os motivos para isso são vários.
          Conheci certa vez um padre que perdeu a fé. Ao largar a batina e as ocupações espirituais, ele resolveu se dedicar a uma tarefa que fosse radicalmente oposta, associada ao que existe de mais efêmero e carnal. Após os estudos necessários, ele se tornou um obcecado pela morte física e hoje é um dos mais prolíficos legistas de uma cidade no Maranhão.
          Algumas pessoas são ousadas – e o que seria do mundo se não fossem elas? Engajam-se em atividades bizarras, ganhando a vida com elementos únicos. Assim acontece com o Sr. Fernandes, português que trabalha como segurança no Museu das Palmilhas Ortopédicas. Eu o conheci numa viagem a Lisboa e me impressionei com sua força de vontade, ali sozinho em longas tardes de monotonia. Um caso parecido é P.W.V. (que me escreve na esperança de que eu não revele sua identidade), bolsista dedicado a reconstituir os dias de Heliogábalo, o mais pervertido dos imperadores da antiga Roma. Sua rotina é igualmente solitária, com a diferença de que ele trabalha num quinto andar com vista para o engarrafamento da av. Dom Manuel.
           Lembro ainda o Dr. K. Kalil, que pesquisa o idioma da tribo dos tártaros negros da Sibéria e para isso suporta um clima de quarenta graus negativos. Penso na jovem Sulfina, olfatista, que cheira e testa produtos pelo odor – algo horrível, no caso de detergentes, e enjoativo, no caso de perfumes. E também não poderia esquecer o revolucionário Zé do Mato, um sujeito que trabalha prensando estrume para fazer tijolos ecológicos. Todas essas figuras vivem dedicadas a profissões volúveis – mas não é o que importa. Mais vale a criatividade por se reinventar a cada experiência, e é por isso que às vezes eu me ponho a imaginar. Se não estivesse envolvida com o magistério, a escrita e a fotografia, o que gostaria de fazer? Poderia ser adestradora de golfinhos, especialista onírica, arqueóloga, jornalista ou atriz – ou talvez escolhesse todas as opções em conjunto. Uma profissão não basta para que eu me sinta múltipla...

Tércia Montenegro (crônica publicada no jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/02/15/noticiasjornalopiniao,2784299/as-profissoes-provisorias.shtml )

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Michel Leiris

Ainda na linha dos surrealistas e seguindo a atmosfera da França das primeiras décadas do século XX (com as inevitáveis ligações com a leitura recente de Duchamp e outras mais, esparsas, de capítulos retirados do livro de Carmen Verlichak, Las diosas de la Belle Époque), encontrei Michel Leiris, patafísico do grupo de Alfred Jarry. O seu livro A idade viril não é, porém, ficção - ou pelo menos, não completamente, já que se pretende autobiográfico. Escrito quando o autor tinha acabado de completar 34 anos, a atmosfera que daí emana é inspiradora pelas referências a óperas, textos literários (sobretudo Racine) e pinturas (principalmente Cranach). Os episódios íntimos, entretanto, perturbam ao expor um lado fragilizante. Alguém talvez possa considerar um ato de coragem, tamanha confissão escancarada - mas para mim ela mostra um ser apatetado, com angústias mesquinhas que derivam quase todas de um simples fato: considerar-se o centro do mundo. Diante de um comportamento assim, eu vejo como a humildade não se confunde com altruísmo, mas é antes de tudo um gesto saudável de distanciamento. Os obcecados por si  mesmos não aprendem a relaxar.
Leiris, no entanto, foi um artista, e aos artistas tudo parece válido, porque é aproveitado ou se converte em estética. Eis porque a leitura ao final agradou - mas de uma forma ambígua e grotesca, assim como este retrato do autor feito por Francis Bacon (e Bacon, aliás, não seria o "amigo pintor"sobre quem Leiris algumas vezes fala, mas ocultando a verdadeira identidade? Suspeito que sim. Nesse caso, o mistério é bem revelador).

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Babinski

Linda, a exposição do Babinski no Sobrado José Lourenço! Vale a pena conferir as aquarelas, gravuras e pinturas! Em cartaz até março.

Antes da coisa toda começar

Já vi alguns espetáculos da companhia Armazém, e sempre gostei de sua assinatura cênica, grandiosa com os cenários que se desdobram, os espelhos, os artifícios de luz. Nesta recente peça, Antes da coisa toda começar, não é diferente: ontem saí realizada quanto a esses aspectos, e ainda tive a ótima surpresa dos momentos musicais - todos excelentes, e alguns bem divertidos - que permeiam a história. O grande problema foi o texto: pobre, cheio de lugares-comuns, com aqueles velhos paroxismos patéticos que me deixavam nauseada. Claro que isso interfere na atuação, por tabela - e, assim, só pude apreciar realmente o trabalho de Ricardo Martins (como Rufus, principalmente; como o Espectro, ele está engessadíssimo por gestos previsíveis) e Karla Tenório. Os dois se mostraram bastante versáteis e com excelente domínio de cena. Patrícia Selonk, ao contrário, irrita com sua voz idêntica que se desgasta sempre no mesmo papel (parece que não importa a peça; ela sempre fará a desesperada), e Tales Coutinho poderia ter sido mais bem aproveitado, também. Rosana Stavis encanta por sua voz incrível - mas a atuação como suicida é semelhante à de Patrícia: não convence.
Claro que apesar de tudo isso o saldo é positivo. Mas fica o ranço: cadê as peças perfeitas, que nos deixam plenamente realizados? Não é demais exigir isso dos artistas; aliás, contentar-se com menos seria desprezá-los.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Revista Baque

Ontem foi o lançamento da Baque - revista cênica idealizada por meu querido e talentosíssimo amigo Thiago Arrais, na parceria com Whashington Hemmes. A edição zero, disponível eletronicamente, está hospedada em conjunto com a revista Pã, de arte e cultura. Há um texto meu sobre a peça Foi, da companhia Vão. Pode ser conferido em http://revistabaque.com/revista/index.php/secoes/baque/204-a-peca-aos-pedacos.html

O riso de Isak (II)

Nas Sete narrativas góticas de Karen Blixen, posso dizer que encontrei o tal humor que não achava antes (e que justificou minha postagem dias atrás). Há muitos instantes claramente irônicos nestes contos - e a comicidade atinge sobretudo temas religiosos. Como um artista não deve satisfação aos pensamentos convencionais, merece aplauso nossa Isak Dinesen, que cada vez me encanta mais, a ponto de eu já ter encomendado sua biografia pelo correio.
Fiquem com um dos trechos divertidos, para alegrar um pouco esta tarde:
"Em Pisa", disse ele, "há muitos anos, eu estava presente quando o nosso glorioso poeta Monti sacou sua pistola e disparou contra o monsignor Talbot. Isto aconteceu em uma ceia com apenas três convivas, exatamente como esta. E tudo começou com uma discussão sobre a danação eterna.
"Na época, Monti acabara de compor seu Don Giovanni e, como desde algum tempo vivia imerso em profunda melancolia, não queria beber nem conversar. Monsignor Talbot perguntou-lhe o que havia acontecido, curioso para saber o motivo daquela infelicidade após um sucesso tão estrondoso. Monti indagou ao monsenhor se não lhe parecia justificável que um homem sentisse o espírito acabrunhado pelo fato de ter criado um ser humano que acabaria ardendo no inferno por toda a eternidade. Talbot sorriu e declarou que isto só poderia ocorrer com pessoas de verdade. Então o poeta se exaltou e perguntou-lhe se o seu Don Giovanni não era de verdade, e o monsignore, recostando-se na cadeira, e ainda sorrindo para o outro por este levar aquilo tão a sério, explicou que queria dizer seres que de fato haviam sido de carne e osso. 'Carne e osso!', exaltou-se o poeta. - 'Como o senhor pode duvidar de que ele era de carne e osso quando só na Espanha encontram-se mil e três damas capazes de atestar tal coisa?' O monsignor Talbot perguntou-lhe então se ele de fato considerava a si mesmo um criador tal como Deus.
"'Deus!', berrou Monti, 'Deus! E o senhor não sabe que, na verdade, tudo o que Deus quer é justamente criar o meu Don Giovanni, e o Ulisses de Homero, e o cavaleiro de Cervantes? É muito provável que estas sejam as únicas criaturas para as quais foram feitos o céu e o inferno, pois o senhor não imagina que um Deus Todo-Poderoso estaria disposto a conviver para todo o sempre, nesse mundo sem fim, com a minha sogra e o imperador da Áustria?" (pp.204-5)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Querida Wisława

Se aconteceu como dizem as notícias - a morte delicada e suave, durante o sono -, é ainda um consolo. Mas eu apenas finjo que me conformo com isso. Quando morre um poeta, as palavras ficam sem saída.

As reproduções

                                                         

         Sempre achei estranho o fato de que em nossa cidade (onde vivem ótimos artistas plásticos) algumas pessoas ainda comprem reproduções de telas famosas, em vez de adquirir uma obra exclusiva, com estilo próprio. Claro que às vezes, na impossibilidade de pagar por um Velásquez autêntico e amado, o indivíduo resolve encomendar uma cópia. Isso até se justifica no caso de uma imagem específica, sonho inviável de consumo, que pode (veja bem: pode) ser imitada com razoável exatidão, dependendo do artista contratado.  O que me parece incompreensível é quando essa compra se torna um hábito, a ponto de alguém cobrir as paredes da própria casa com telas clonadas de quadros famosos – e sem qualquer destreza nos trabalhos: os quadros geralmente são ridículos, paródias ou insultos à peça verdadeira.
         Há, por exemplo, certos estabelecimentos comerciais que têm essa preferência decorativa. Seus donos consideram um toque cultural pendurar imagens de estilos ecléticos e pensam que, quanto mais variada a gama de reproduções – quase todas muito bizarras –, mais “intelectual” será o ambiente. Num determinado café que gosto de frequentar, encontro ensaios impressionistas que, do nome, só deixam a impressão de que o artista quis imitar Monet. Numa loja de calçados, deparo com arremedos de Lautrec – e creio que esses quadros, com as mulheres no cancan que projeta as botas para cima, seriam uma boa ideia para o lugar, caso a pintura não tivesse escorregado: há um ponto em que a aquarela se confunde com nódoas de mofo na parede.
          Um restaurante ostenta reproduções de Vermeer, e aquela que é sua obra mais famosa aqui deveria se chamar Moça com brinco de pérola e paralisia facial. Bem ao lado deste rosto rígido, há uma cópia de Rembrandt, com cores tão esquisitas que talvez se intitule Autorretrato com hepatite. No consultório odontológico de um amigo, colocaram réplicas de Modigliani, com figuras que seriam muito fiéis, se ele tivesse pintado ETs... Também não deixo de lembrar as marinhas brutais, quase rupestres, que me foram apresentadas como versões do etéreo Turner, na casa de uma prima!
          São episódios extremos, bem sei – mas revelam o senso estrábico que boa parte do nosso público tem, na hora de consumir arte. Sem perceber a armadilha em que caem, as pessoas dão preferência ao “estrangeiro” (mesmo que este seja arremedado), em detrimento de obras locais, com valor estético e originalidade.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/02/01/noticiasjornalopiniao,2776558/as-reproducoes.shtml)