LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Leia com moderação

Amigos,

Logo, logo chegará às livrarias a antologia 50 versões de amor e prazer, organizada por Rinaldo de Fernandes e publicada pela Geração Editorial. São contos eróticos escritos por 13 autoras brasileiras (eu e Ana Miranda somos as "representantes cearenses"). No início, para mim foi complicado superar a timidez diante de certos temas e palavras, para me dedicar às quatro histórias picantes que aqui estão publicadas. Durante um tempo, passei por hesitações, até me lembrar: arte é território de liberdade e sempre existe uma maneira interessante de tratar qualquer assunto, mesmo aqueles que à primeira vista inspiram tabu.
O resultado dessa experiência foi libertador; creio que ainda farei várias outras narrativas na mesma linha, nem que seja por um simples exercício literário...

sábado, 27 de outubro de 2012

Semiótica para a vida

Trecho de Raúl Dorra em posfácio à edição de Da imperfeição, de Greimas:
"(...) o projeto da semiótica é - deveria ser - nada menos do que mudar a vida, ensinar aos homens, se não uma grande sabedoria, pelo menos um conjunto de pequenas astúcias - pequenas escapatórias que permitissem à beleza, inteira ou em migalhas, descer à humildade de cada dia. A semiótica, segundo Greimas, estaria envolvida nesta utopia: fazer da pequenez cotidiana uma batalha silenciosa pela beleza, recuperá-la no mundo. (...) A arte, então, nos é necessária a cada minuto, e a semiótica também: aquela porque é o que pode formar a beleza diante dos nossos olhos maltratados pela feiúra, e esta porque é a que pode 'ressemantizar a vida', entregando-nos deste modo as chaves da beleza." (pp.122-3)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Meu destino exótico


MEU DESTINO EXÓTICO

Funcionou assim: durante seis meses, fiz circular pela internet uma carta-convite, propondo às pessoas que me contassem um destino exótico que tivessem adotado – e isso poderia significar uma simples expedição ou todo um estilo de vida, com as consequências imagináveis. Como tudo o que é virtual escapa ao controle, essa proposta ganhou mundo e acabei recebendo mensagens de gente que nunca vi. Aqui vão alguns desses relatos, com nomes fictícios, para não ferir sensibilidades.
Siptsbergen é uma ilha ártica pertencente ao território norueguês, uma das poucas habitadas, no arquipélago das Svalbard. Para ali viajou a artista plástica Mimi Al Xantz, e não somente para ver de perto os fiordes e geleiras. Ela tinha o objetivo de esculpir figuras abstratas no permafrost, embora suas intervenções quase não se distinguissem das imagens naturalmente criadas ali. Entretanto, Mimi ganhara uma bolsa de pesquisa internacional com esse projeto, e ela teria levado a cabo sua experiência, se não tivesse ficado traumatizada após a perseguição de uma raposa-polar. Mimi fugiu do bicho e da própria Siptsbergen, para nunca mais voltar.
Destino exótico (e permanente) teve o desempregado Asdrúbal Havin, que depois de uma epifania largou a família e assumiu um comportamento messiânico. Seu grande desejo era pegar um trem para Astápovo, a estação ferroviária onde morreu Tolstói. Não sei se ele economizou o suficiente para chegar à Rússia, mas faz um bom tempo que desapareceu e já não manda notícias.
Ambição menor, porém igualmente esquisita, foi a do engenheiro aposentado J. P. Freitas, que investiu todas as finanças que possuía na construção de um gabinete de figuras de ceras. Dizem que o local é bem organizado: as figuras, todas de políticos brasileiros, são verossímeis e até assustadoras. Entretanto, o gabinete vive às moscas, porque os habitantes de Caracaraí, onde ele foi instalado, jamais o visitam.
No âmbito do esporte, há muitas histórias de proezas – mas creio que me enviaram somente as inúteis, mostrando indivíduos engajados num treinamento descomunal para se tornarem os bilionésimos a bater determinado recorde. Um exemplo disso está em Patrick, jovem cearense que encontrou sua maior pretensão atlética na escalada do monte Kosciuszko, na Austrália. Seus amigos o advertiram de que qualquer aborígene fazia aquilo com um pé nas costas, mas Patrick chamou a todos de invejosos. Enfrentou dietas, exercícios e uma viagem longuíssima: rompeu um tendão do tornozelo nos 200 metros iniciais de subida e, de tão humilhado, virou clandestino, sem coragem de voltar para o Brasil.
Recebi outros relatos que também merecem entrar numa página; são inspiradores – nem que seja para a gente ficar quieta e satisfeita com o destino que Deus nos deu. Quem sabe na próxima quinzena eu volte a esse tema... Até lá, continuem enviando suas histórias!

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

sábado, 20 de outubro de 2012

Bertazzon & Bernardelli

Para se embevecer: duas esculturas do Museu de Belas Artes do RJ. Esta é um Angelus, de 1933, criação de Hugo Bertazzon (vale a pena também muitíssimo ver sua Pietà, na Pinacoteca de SP):

A obra de baixo é uma Moema, de Rodolfo Bernardelli. A história desses três irmãos artistas, Félix, Rodolfo e Henrique, é fascinante, e vale a pena pesquisá-la. Por enquanto, fiquemos com essa escultura, que mostra uma índia submersa e, ao mesmo tempo, mostra a arte nascendo de sua matéria - algo parecido com aquelas esculturas inacabadas de Michelangelo...



segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Dia dos professores

A mensagem na lousa, em polonês, diz: "O gato sabe melhor" (rs). De fato, para quem fica atento, os felinos são grandes sábios e professores - embora um tantinho esnobes...

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Os enamoramentos

Trecho da pág.288:

"Miguel não fazia muitas objeções a morrer, se é que se pode dizer isso, compreenda, de alguém a ponto de completar cinquenta anos e que tinha uma vida boa, com filhos pequenos e uma mulher que amava, quer dizer, sim, da qual estava enamorado, sim. Claro que era uma tragédia, como seria para qualquer um. Mas ele sempre esteve muito consciente de que se estamos aqui é por uma inverossímil conjunção de acasos e que não se pode protestar contra o seu fim. As pessoas acreditam que têm direito à vida. Mais até, as religiões e as leis de quase todos os lugares, quando não as Constituições, acolhem essa ideia, e no entanto ela não via as coisas desse jeito. Como é que a gente vai ter direito ao que não construiu nem ganhou? costumava dizer. Ninguém pode se queixar de não ter nascido, ou de não ter estado antes no mundo, ou de não ter estado sempre, logo por que alguém podia se queixar de morrer, ou de não estar depois no mundo, ou de não permanecer sempre nele? Uma coisa lhe parecia tão absurda quanto a outra. Ninguém faz objeções à sua data de nascimento, logo não teria por que fazer à da sua morte, igualmente devida a um acaso."

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Javier, Javier

Estou acabando de ler Os enamoramentos, do Javier Marías. Fiz uma pausa nos russos porque não resisti a esse romance do autor que, para mim, é o que há de melhor na prosa em língua espanhola da atualidade. Entretanto, devo dizer que o livro me decepcionou um pouco. Estava acostumada à qualidade de obras como Quando fui mortal, Coração tão branco e Amanhã, na batalha, pensa em mim - histórias que sempre me faziam sair de sua experiência com aquele embevecimento de admiração pelo arranjo, pelas soluções narrativas e, sobretudo, pela capacidade reflexiva. Este último ponto talvez seja o único que permanece íntegro n'Os enamoramentos, e afinal é o que nos faz reconhecer o estilo de Javier Marías, que tem esse hábito de paralisar a ação para fazer incursões digressivas interessantes - no que lembra, às vezes, José Saramago e Villa-Matas (embora este tenha certa desvantagem estética). No restante, porém, o romance não me convence. Tive a sensação de que o início, quando a protagonista se apresenta como funcionária de uma editora e passa a descrever os autores como caricaturas maníacas, nada mais é do que uma espécie de vingança ou recado do escritor para os seus pares. Não que eles não mereçam a crítica, mas achei que ela entrou de maneira forçada, no livro. Além disso, existe o grave problema de que as vozes da narrativa são todas iguais; personagens os mais diversos caem em reflexões idênticas, usando as mesmas palavras, inclusive. Essa "preguiça" de especificar os temperamentos das figuras literárias acaba explicitando demais o próprio autor, e talvez não por acaso um dos personagens se chame Javier, e a protagonista, Maria. Conhecendo os outros livros deste espanhol, sei que a presença autobiográfica faz parte de seus enredos (e isso, aliás, nunca foi um defeito). Mas a monofonia desse romance não me parece uma estratégia e, sim, uma carência.
Ainda tenho por ler, em minhas estantes, a trilogia Teu rosto amanhã. Espero que ela me resgate um antigo Javier Marías, mais cuidadoso com suas estruturas literárias.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Crônica do Rio


CRÔNICA DO RIO

         No caminho de volta para Fortaleza, soube que não tinha aproveitado um décimo do que a cidade podia oferecer. O tempo escasso cortou minhas programações impiedosamente, e assim eu deixei o Corcovado, a Academia Brasileira de Letras, o Theatro Nacional, a Quinta da Boa Vista e o Zoológico para outra vez. Passeios pela Lapa, por Santa Teresa, Leblon ou Laranjeiras também entraram na lista futura – mas o pior foi saber que, por um medonho erro de comunicação, não vi o amigo Silvestre, chegado ao Rio de última hora, para um encontro com Oscar Niemeyer! Amaldiçoei todas as companhias telefônicas do país e pus-me a refletir sobre o que, afinal, eu tinha feito nessa primeira estada no Rio de Janeiro.
Já no voo de ida começou a aventura, quando uma comissária de bordo sofreu assustadoras crises de labirintite ao servir as refeições. Mais tarde, eu tentaria compensar aquele sanduíche com um jantar no Lamas, point intelectual desde o século XIX. Na categoria de bares históricos, no dia seguinte conferi o Amarelinho, em frente à Biblioteca Nacional, e reparei que os seus garçons pareciam todos sofrer de um certo grau de icterícia. Mas nada se compara ao restaurante A Polonesa (experimente gołąbki ao som de Chopin e diante de uma foto do Castelo de Wawel) ou à Confeitaria Colombo (onde devemos saborear profiteroles – a sobremesa favorita de Rui Barbosa).
         Consegui visitar a Biblioteca e o Museu de Belas Artes, com sua impressionante coleção. E vi uma peça com Luís Melo, a excelente “Ausência”, no Sesc Ginástico. Entretanto, para que não digam que só me interesso por comida e arte, confesso que suspirei diante da paisagem. Posei para fotos em praias, calçadas e morros. Em Copacabana, encontrei um “artista da areia” prodigioso, embora excessivamente eclético: ao lado de palmeiras e cristos redentores, ele esculpia um rosto muito parecido com o de Rubem Fonseca... No Jardim Botânico, tive os maiores encantos – além das orquídeas e bromélias, vi a exuberante sumaúma, árvore de Tom Jobim. Bem perto do chafariz, ainda havia o curioso tronco oco onde D. João VI se escondia, sempre que tinha pesadelos com Napoleão.
         Mas talvez o passeio para Niterói, rumo ao Museu de Arte Contemporânea, tenha sido o mais intrigante, pela tábua de restrições fixada na balsa. “Proibido cantar e fazer pregações religiosas” e “proibido jogar pôquer dentro do navio” eram exemplos do caráter carioca? Preferi achar que não – e também olhei para o outro lado, ignorando as manchas de óleo na Baía da Guanabara. No último dia de viagem, eu já não veria muita coisa, literalmente. Um pombo roubou os meus óculos, no Largo do São Francisco; saiu voando com a armação entre as garras, e por pouco não fiquei caolha como a estátua de Camões bem pertinho dali, no Real Gabinete Português de Leitura. Voltei míope e arranhada, mas decidida a retornar. O Rio de Janeiro merece novos roteiros e emoções, e estarei preparada!

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)




terça-feira, 9 de outubro de 2012

Eleiçõe$

Fotografei estes grafites no Largo da Carioca, algumas semanas atrás. Agora, eles me parecem mais apropriados do que qualquer consideração sobre os resultados eleitorai$...Como é aquela frase? Se correr, o bicho pega; se ficar...

domingo, 7 de outubro de 2012

As afinidades eletivas, por Urik Paiva

As afinidades eletivas
por Urik Paiva

Os gritos dos galos partidários rasgam a manhã para advertir: estamos em período eleitoral. As militâncias soam militares no fazer levantar da cama e pôr o mau humor na rua para ouvir aqueles jingles, os quais acredito terem sido compostos por alguém como Tom Jobim; receber panfletos com a bela cara de políticos que mais poderiam ser concorrentes a Mister Suécia; ser quase fatalmente atravessado por uma carreata ou bicicleata em que os condutores são pessoas tão felizes que é de se acreditar que tenham experimentado todo o Kama Sutra antes de sair de casa; ser abduzido nas esquinas por bandeiras gigantes que ficariam frouxas enrolando a Catedral; ter os tímpanos sodomizados por discursos megafônicos que deixariam Beethoven ainda mais surdo, ele que era completamente surdo; e escutar um sem tamanho absurdo de promessas que talvez envolvam a devolução do Paraíso a Adão e Eva.

Dois amigos votam em candidatos diferentes: perseguem-se pelas ruas empunhando peixeiras; quebram os dentes um do outro com exemplares d’O Príncipe, de Maquiavel. Marido e mulher possuem divergências políticas: cerceiam-se de contato íntimo enquanto não chegam a um denominador eleitoral comum; praguejam-se de Margaret Thatcher e Karl Marx dependendo de como analisam o excedente de produção.

Loirinha fritada pelo sol, Fortaleza está aquartelada pelo que há de mais dantesco na democracia. Nós, os misantropos políticos, que sempre votamos nulo para rainha do colégio e hoje não sabemos quem são os síndicos de nossos próprios prédios, sofremos o bullying de outubro - esse, sim, o mais cruel dos meses – que se aproxima.

Busco uma evasão possível diante das agruras de um tempo que poderia ser belo em vez de bélico. Ainda há rei em Pasárgada? Porque se houver prefeito, há também campanha e não será possível escapar do perturbador bochincho eleitoral.

A solução para meu ranço vem no correr de um exercício à la realismo fantástico. Dentro da biblioteca, o mais prolífico dos refúgios, sou o (e)leitor que recruta seu rol de afins. Tire o seu título de eleitor do caminho que eu quero passar com meu relicário ficcional.

A overture de um intrigante fenômeno mental se dá quando penso em Iracema, signo literário de nossa terra, oferecendo-se à governança da capital cearense. O Partido Tabajara poderia, caso deixe de lado as desavenças políticas, se unir a toda a nação Tupi e conseguir bastante tempo de televisão para o horário eleitoral. Os mais conservadores não vão aprovar a inclinação da virgem à liberação do consumo de alucinógenos, como o Segredo da Jurema. Enquanto os mais liberais considerarão um retrocesso a militarização da Guarda Municipal com arco e flecha.

A figura da personagem de José de Alencar se desfaz em minha mente, dando lugar ao discurso inflamado de uma Maria Moura sob o sol da Praça do Ferreira a instigar toda a sorte de mulheres a um levante feminista derradeiro, para aflição do eleitorado masculino. Para deixar a chapa um tanto mais polida, mas sem perder o caráter enfático, o arranjo partidário poderia incluir a Capitu de Machado de Assis, sendo a dissimulação dos olhos de ressaca um fenômeno não raro na política. A mulher de Bentinho, através da condição do esposo, poderia alavancar muitos votos naquela região populosa do José Walter, cujos chavelhos dos homens são vigorosos indicativos de um determinado status quo.

De Machado, ainda cabe considerar, para nosso inusitado pleito, Simão Bacamarte, defensor pétreo do equilíbrio e da normalidade. Entre suas propostas, a ampliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPES), variando-os tematicamente: o CAPES para os perigosamente descuidados, para os excessivamente gulosos, para compulsivos sexuais, para leitores de Paulo Coelho, para pretendentes a ascensoristas etc.

Retrocedendo aos primórdios do cânone literário ocidental, temos, do Partido Homérico, o heroico Odisseu, que promete construir faixas de trânsito exclusivas para quem está voltando de Ítaca e acabar com o problema da superlotação do transporte público com enormes cavalos de madeira que comportariam toda a massa produtiva. Não teríamos o Cavalo de Tróia, e sim o Cavalo do Mucuripe, o Cavalo do Bom Jardim, o Cavalo da Serrinha etc.

Um mau candidato seria o sanguinário príncipe Hamlet, que nem numa surpreendente conversão ao republicanismo poderia dar certo como nosso alcaide, haja a quantidade de interesses pessoais que arrolaria à máquina administrativa. O que daria muito sentindo à afirmação: Há algo de podre no Município de Fortaleza. Mas não restam dúvidas de que Horácio, sempre lúcido, pudesse ocupar com louvor alguma secretaria.

Também não seria acerto da cidade eleger Pinóquio como prefeito. Além de imaturo e ambicioso, este cara de pau possui uma nociva apetência ao embuste. Talvez mentisse tanto que seu nariz crescesse do Paço Municipal ao Terminal do Siqueira.

O caso Lewis Carrol é intrigante. Se por um lado há a débil e inexperiente Alice, boa de coração, mas cujo programa de governo é o mais fora da realidade possível, apresentando uma cidade inexequível, tem-se por outro o Coelho Branco, cuja promessa de terminar todas as obras no tempo certo soaria agradável ao eleitor alencarino.

Compondo a lista dos candidatos mais sérios e comprometidos, há o surpreendente Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, mais conhecido como O Cavaleiro Inexistente, que, segundo o romance de Italo Calvino, era o mais austero dos paladinos de Carlos Magno. Sua característica marcante é que, dentro da deslumbrante armadura branca, ele simplesmente não existe. Trocando o metal da armadura pelo linho do burocrático paletó, o nosso Prefeito Inexistente faria uma gestão de visível competência fiscal, digna do panteão de honra do Portal da Transparência. Literalmente. 
 
Do Novo Testamento para as urnas de nossa capital. Jesus Cristo é de longe o campeão das promessas miraculosas. Caro eleitor, cara eleitora, este homem não vai transformar a rua da sua comunidade na Champs-Élysées, não vai despoluir o canal do seu bairro andando por cima das águas, não vai liberar espaço no São João Batista ressuscitando os mortos, não vai multiplicar seu mercantil, não vai dobrar sua cerveja no bar. Este homem, assim seja, talvez nem passe das prévias com Barrabás.

Bem à esquerda do espectro político, Oliver Twist garante governar para os miseráveis, ampliando o acesso a programa de inclusão social, o que deixará a classe média da Regional II um tanto descontente. Além disso, seu primeiro escalão seria todo composto por outros órfãos de Dickens.

À deriva em pensamentos surreais, imagino um jovem Werther que, abismado com o déficit público, cometeria suicídio nos primeiros dias de mandato. Mil e uma propostas para sobreviver em Fortaleza, este poderia ser o programa de governo de Sherazade. O Pequeno Príncipe, aparentemente ingênuo e pueril, talvez seja na verdade um corrupto, fazendo valer a máxima “O essencial é invisível à prestação de contas”. Caso chegasse à chefia do Executivo, o autocomplacente Leopold Bloom criaria mais um feriado municipal, o Bloomsday, em 16 de junho. Hannibal Lecter promete acabar com o problema da fome em Fortaleza. E, seja lá qual for o resultado das eleições, Emma Bovary implora a nomeação do Doutor Charles, seu marido, como plantonista do IJF, deixando-o pouquíssimo tempo em casa.

Agradando a todas as classes sociais, a Mulher do Médico, aquela que permaneceu enxergando diante da terrível epidemia de cegueira relatada por José Saramago, pode ser a grande surpresa destas eleições. Mantendo-se lúcida em meio à aflição coletiva, ela prestou-se, como servidora empossada pelas circunstâncias, a guiar os cegos pelos dissabores de um mundo autoconfinado. Mas nós não somos cegos, retrucariam os opositores da candidatura, que teriam apenas um constrangedor silêncio como réplica.

Chegamos ao fim do conclave fictício com a condenação a candidato do desavisado Joseph K., o bancário que, em O Processo, é acusado de cometer um crime a ele desconhecido. O personagem talvez expressasse o mesmo assombro ao ser avisado de que foi repentinamente declarado, por ampla maioria democrática, prefeito da cidade, sem nem mesmo saber que estava concorrendo. A democracia tem dessas arbitrariedades.

Curiosamente, é Kafka quem me retira de minha própria invenção, antes mesmo do findar do pleito, e me faz retornar a Fortaleza real, mas não menos absurda que esta outra de dentro do papel. Não seriam essas duas Fortalezas uma só? No fim das contas literárias, deixo à cidade a responsabilidade do espetáculo narrativo de contar a si mesma. 
 
(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Confiram também no blog do autor, abstrato armado

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A musa dos olhos impossíveis

Quando estive na galeria dos pintores brasileiros, no Museu de Belas Artes do Rio, fiquei absolutamente impressionada com a série de quadros do Pedro Américo em que aparece uma mesma figura feminina, de olhos impossíveis. No detalhe da tela acima, ela aparece no papel de Joana D'Arc, e em vários outros quadros assume personagens as mais diversas. Quem teria sido essa modelo que posou para o artista? Será que ela realmente possuía esses olhos anatomicamente absurdos (apesar de belos, ou exóticos)? Como Pedro Américo era muito talentoso, não posso crer que ele tenha "exagerado" ou "errado" a fisionomia dessa mulher, ainda mais quando vemos o seu rosto, idêntico (e até mesmo envelhecendo, conforme a cronologia das pinturas), na série dos quadros ali expostos.
Estou remoendo o mistério dessa identidade... Se alguém tiver qualquer pista, por favor, me ajude!