LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

domingo, 30 de dezembro de 2012

O pesadelo de Chico Buarque

Amigos,

Está disponível, em pdf, o meu artigo intitulado "O pesadelo urbano nos romances de Chico Buarque", publicado pela Revista Todas as Letras (Qualis A - nacional). Quem quiser, pode conferir no site
http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tl/index

Um ótimo 2013 para todos!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Stalker

Tenho visto ótimos filmes nos últimos dias: A pessoa é para o que nasce (documentário maravilhoso), Do mundo nada se leva (um clássico que faz a gente pensar na "comercialização do medo", tão comum e crescente) e Apertem os cintos: o piloto sumiu (para risadas a cada cena). Mas Stalker, de Tarkovski, foi uma escolha motivada pela leitura recente do livro de Geoff Dyer, que citei na postagem abaixo (e depois, terei a chance de voltar a esse assunto, espero). Não somente as imagens do filme são belíssimas e inesquecíveis, mas há um trecho que mereceu o play-pause repetido, para que eu o anotasse:

"Que se cumpra o idealizado. Que acreditem. Que riam das suas paixões. Porque o que consideram paixões, na realidade, não é energia espiritual, mas apenas fricção entre a alma e o mundo externo. O mais importante é que acreditem neles próprios e se tornem indefesos como crianças, porque a fraqueza é grande, enquanto a força é nada. Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre, é impassível e duro. Quando uma árvore cresce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; a flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece nunca vencerá." (Parte II)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Sobre as árvores

Trecho do livro do Geoff Dyer (Ioga para quem não está nem aí):

"O ser da árvore consiste inteiramente em crescer", disse Circle durante um dos nossos passeios.
"Discordo."
"Eu também."
"Balançar as folhas ao vento. Fornecer poleiros para os pássaros, ser uma coisa que o céu pode rodear. Ser uma coisa em que se pode subir. Tudo isso é parte do ser da árvore." (p.54)

domingo, 23 de dezembro de 2012

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O turista depredatório


O TURISTA DEPREDATÓRIO

Apesar de ver muitas considerações sobre o turismo feitas em livros, reportagens ou textos de aventura, o assunto me parece inesgotável. Lembro que anos atrás eu e meu amigo Juva tentamos elaborar o “Decálogo do perfeito turista” enquanto rodávamos a caminho de Mafra. “O turista não vê, fotografa”, propôs ele, ironizando o meu hábito de estar sempre com a câmera ligada. “O turista segue as setas”, continuei, apontando para a sinalização na estrada – e assim nos divertimos, criando uma lista que nunca chegou a terminar.
Recentemente fui levada a refletir sobre o “turista depredatório” – categoria que se define por depredar monumentos, obras históricas ou tesouros de nações alheias, sendo este o seu principal objetivo nas excursões mundo afora. O amigo Renato me falava disso a propósito de uma pessoa, que certa vez roubou ossos sírios de um cemitério bizantino, para usá-los como amuleto. Em troca, contei-lhe uma cena ocorrida em Jerusalém: apesar das proibições do guia, interditando qualquer proximidade com as árvores sagradas, vi um homem arrancar um ramo de oliveira, e de modo tão excitado como se estivesse roubando o diamante Orloff.
Quando se trata de elementos da natureza, aliás, esse turista parece que se torna superdepredatório. Os sistemas de segurança ao ar livre são ineficazes; não há como instalar sensores, redes de choque ou barreiras para impedir que conchas, torrões de areia ou cascas de tronco sejam surrupiados. Mas quem se importa com essas coisas? – indagará alguém. O turista depredatório – garanto. Embora ele encontre idênticos produtos no próprio país, acredita que aquela folha específica, dos Jardins de Dessau-Wörlitz, será diferente de todas as outras. Ele precisa arrancá-la e escondê-la, como um verdadeiro malandro. Quer o souvenir gratuitamente, seja porque sabe que não está à venda (ou, se estivesse, apenas ricos museus conseguiriam comprá-lo), seja porque tem uma tendência cleptomaníaca lá no fundo da alma. 
Sem tecnologia para deixar a natureza tão protegida quanto o acervo do Hermitage, os sítios turísticos contam somente com a inspeção humana. E às vezes ela se torna tão minuciosa, movida por um instinto de preservação tão exaltado, que o profissional responsável pela tarefa se torna um guia econazista. Um deles certamente trabalha no Morro do Pai Inácio, na Chapada Diamantina. Lá, em certa ocasião uma inocente francesinha arrancou uma flor e se pôs a brincar com as pétalas. O guia cuspiu-lhe ofensas que ela não entendeu completamente, por causa do idioma – mas o fato é que a francesa acabou por enfiar de novo a florzinha no chão, na tentativa de devolver o objeto que nunca deveria ter tocado.
Renato me falou de outros casos, como o furto a azulejos do século XVIII no Convento de São Francisco, em Salvador, e o roubo de uma pedra da Casa da Torre de Garcia d’Ávila, além da apropriação de seixos pré-históricos em diversos parques nacionais. Ele, que conhece vários turistas depredatórios, já pensa em fazer um estudo sobre a pilhagem como elemento motivador de viagens...

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site.)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O perseguidor

Trecho do conto "O perseguidor", do livro As armas secretas, do Cortázar - cada vez mais pertinente e essencial:

" - O problema é que eles se acham sábios - diz de repente. - Eles se acham muito sábios porque juntaram um montão de livros, e comeram todos. Isso me faz dar risada, porque na verdade são boa gente e vivem convencidos de que o que estudam e o que fazem são coisas difíceis e profundas. (...) As pessoas acham que algumas coisas são o máximo da dificuldade, e por isso aplaudem o trapezista, ou me aplaudem. Eu não sei o que imaginam, que eu estou me arrebentando para tocar bem, ou que o trapezista rompe os tendões cada vez que dá um salto. Na verdade, as coisas verdadeiramente difíceis são outras tão diferentes, tudo que a gente acha que pode fazer a qualquer momento. Olhar, por exemplo, ou compreender um cão ou um gato. Essas são as dificuldades, as grandes dificuldades."


domingo, 16 de dezembro de 2012

Último ato - para rir do fim do mundo

Amigos,

Hoje também saiu, no mesmo caderno Vida & Arte, este texto do Urik Paiva, que recomendo para quem quiser boas gargalhadas!


Último ato

Então, Deus se sente exausto, após milênios e milênios de árduos trabalhos. A Terra está muito populosa, a camada de ozônio não tem mais jeito e a cerveja anda bastante cara. E Deus viu que era boa a ideia de se aposentar (por idade ou tempo de serviço, tanto faz), mas lamentou não ter contribuído com a previdência desde o começo para terminar melhor financeiramente.

E Deus, ao decidir findar o mundo, pensou que o Apocalipse tal e qual vaticinam as Sagradas Escrituras é praticamente inexequível do ponto de vista técnico, pois se trata de um megaevento, muito mais grandioso do que a Copa do Mundo e as Olimpíadas; se fosse licitar tudo, jamais concluiria no seu mandato, por mais eterno que este fosse. O Senhor pensou que não queria acabar com o mundo por etapas, assim como procedeu com a criação, portanto deveria executar o serviço num só dia, num só instante, talvez dizendo apenas: “Haja escuridão”. Então, lembrou que boa parte da população mundial possui celulares com lanterna, o que impossibilitaria o efeito desejado. E Deus também descartou algo como um Grande Pum, pois o acusariam de roubar a ideia da comunidade científica sobre a origem do Universo.

O Senhor, movendo-se sobre a face das águas – já não tão límpidas assim, viu que não seria nada prático dar cabo de uma espécie como a humana, afinal não se trata mais de erguer pessoas peladas do barro, e sim desmontar toda uma estrutura de gel no cabelo, botox e escova progressiva.

“São o grande problema da Terra”, pensou Deus ao lembrar que os homens são capazes de escravizar seus pares e cobrar mais de três reais por um coco gelado na praia, embora houvesse que admitir que contam boas histórias numa fila de banco e conseguem dar múltiplos usos à manteiga. Valeria a pena manter Woody Allen fazendo filmes e as pessoas cantando irresponsavelmente no chuveiro. Mas e os especuladores imobiliários e operadores de callcenter?

Confuso sobre a destruição do mundo, resolveu Deus caminhar numa cidade qualquer a fim de desanuviar os pensamentos e escolheu uma ao sul do Equador. Mas Deus na verdade teve os pensamentos fritados, porque Fortaleza é muito quente. E percebeu Deus que talvez pudesse ter dado uma segunda opção a Moisés no que concerne a desertos.

Mas além, muito além do calor que embaça o horizonte, viu Deus que Fortaleza era boa, pois nesse dia comeu pastel e tomou caldo de cana na Praça do Ferreira, deu uma volta no Passeio Público e assistiu ao sol se pôr na Barra do Ceará.

“Se a cidade tivesse mais calçadas e árvores, poderia montar uma filial do Éden aqui”, pensou Deus, enquanto amaldiçoava os semáforos da rotatória da Aguanambi. E alguém escutava Alucinação no rádio, e viu Deus que o Belchior era bom.

Mas Deus não gostou da pobreza e dos edifícios muito altos, que não deixam o vento correr. Em compensação, achou uma boa as pessoas se reunindo no boteco depois do expediente. Então, pensou Deus que na hora derradeira do mundo desejaria estar perto de amigos. “Valha-me, Deus, eu não tenho amigos!”, exclamou Deus, num ato falho autorreferente, dando-se conta em seguida que a mitologia grega era mais interessante nesse sentido.

Despedindo-se de Fortaleza, caminhou o Senhor por outras cidades, e viu que são todas iguais e todas diferentes, pequenas e grandes, adoráveis e terríveis. E caminhou o Senhor por cima do coração dos homens, embora tenha se esquecido de avisar aqueles propensos a doenças cardíacas.

E vendo que são os homens capazes de tantas coisas – tantas e tão distintas -, como separar o sujeito do predicado com vírgula e sonegar o imposto de renda e não dividir uma bola de sorvete e inventar desculpas muito criativas e torturar alguém com cócegas e adestrar cães para morder parentes chatos e cantar Fly me to the Moon no meio da chuva e odiar uns aos outros e amar uns aos outros, decidiu Deus deixar ao arbítrio Deles, dos homens, acabar ou não com o mundo, embora não ousasse deixar de pagar um bom seguro para ele.

URIK PAIVA é escritor.

Impaciência - um conto sobre o fim do mundo


IMPACIência

“Olha, para falar a verdade, não estou nem aí”, estive para dizer – e disse até, a outras pessoas mais próximas que me chegaram antes, melancólicas ou desesperadas, comentando previsões. Tudo apontava à mesma trilha, ou seja, trilha nenhuma, fim do mundo, nada de futuro daqui a uma semana, entendeu? – tentava me explicar Mauro, de Bíblia numa das mãos e jornal na outra. Eu coava o café de costas para ele, mantendo-me calada para não ironizar seus argumentos tão ecléticos. De um lado, o jornal trazia tarôs, cabalas, aeromantes que viam a sorte nas nuvens e no vento, adivinhos os mais variados, que encomendavam pérolas ou ovos para ler mensagens em sua superfície, e lembro que havia até um respeitado arqueólogo que usava um martelo para fazer previsão através de fósseis. Na Bíblia, o veredito era idêntico, pelos trechos do apocalipse que Mauro agora recitava: trombetas, sinais e taças anunciando a morte próxima.
            “Com açúcar ou adoçante?”, perguntei, e creio que por um instante Mauro pensou que eu estava ridicularizando o final que nos ameaçava. Olhou-me sério, quase raivoso, mas então percebeu a xícara que eu lhe estendia e sentou-se no banco da cozinha: com açúcar; não faz diferença. “Entretanto, continuamos a tomar um bom café”, comentei, depois do primeiro gole. Mauro desanimou um pouco, viu que o esforço para me converter não estava adiantando. Afinal, o que mudava, se eu acreditava ou não na catástrofe? Ela não deixaria de acontecer: havia muitas setas apontando para o mesmo texto, embora com variações do modus operandi: alguns falavam em línguas de fogo, terremotos ou raios fulminantes. Outros garantiam uma simples explosão súbita, assim como se a Terra virasse um balão que de repente espoca – e eu imaginava cada partícula de montanha lançada no espaço, a torre Eiffel como um alfinete a voar, catedrais se desfazendo feito areia, mares respigando no cosmo, talvez muito lentamente (diziam os físicos), e nós, seres mínimos, arremessados em dissolução, transformados em vácuo ou som que reverbera e ninguém escuta. A tese mais aceita, porém, era a da grande onda a varrer continentes – o que significava que haveria locais preservados. Afinal, o fim não parecia ser de tudo a um só tempo; recônditos desertos ficariam intactos, e inclusive já deviam estar sendo ocupados pelos magnatas. Os excessivamente ricos tomam suas providências: políticos constroem bunkers refrigerados no Saara, ou então se mandam para algum tipo de satélite onde planejam viver flutuando, com as famílias escolhidas para repovoar o mundo em algumas décadas. Pensei naquelas arcas de noé siderais e fiquei sinceramente deprimida pela geração seguinte. Ainda bem que eu não estaria presente para ver aquela história ou conviver com seus personagens. No momento, era o bastante suportar Mauro com sua ladainha de urgência, como se a alma fosse a única coisa a salvar, uma espécie de HD com as memórias da fé e da redenção. Eu não acreditava que ele havia comparado o espírito com um computador, mas ele continuava no raciocínio: se eu acessasse aquele meio, estaria garantida para sempre, por toda a eternidade teria paz.
            Mas a paz virá de qualquer jeito, com o nada – argumentei, folheando o jornal, que citava antigas cosmogonias, ciclos de criação e destruição conforme os hindus. “Dias e noites de Brahma”, li em voz alta, e Mauro novamente pegou a Bíblia para catar versículos. Eu continuei passando a vista sobre as páginas, enquanto ele testava o efeito nulo de uns trechos apocalípticos sobre mim. Eu estava mais interessada no divino carma da Índia, no véu de Ísis ou no eclipse celta: um emaranhado de informações que num relance fisguei, antes de tomar o último gole de café. Sentia-me exausta com tantas palavras; mesmo escritas, elas criavam um barulho incômodo, o retorno de um pensamento obsessivo, círculos de tédio. Talvez Mauro finalmente me compreendesse, pois se calou e disse que estava na hora de ir. Despediu-se com ar de fatalismo, segurando meus dedos à maneira de um velho mestre. Mas, quando fechei a porta, achei estranho que ele não tivesse também lançado um olhar de despedida ao meu apartamento. Eu própria já havia contemplado muitos locais da cidade com aquele desprendimento saudoso de quem sabe que não vai retornar. Era o olhar de dor e conformismo que eu aplicara um mês antes sobre o homem que parecia ser o amor da minha vida e no entanto me traíra de um jeito tão vergonhoso. Eu pensava nele agora, nos planos que tínhamos feito, brincando, de passar o fim do mundo juntos e abraçados, na cama. Ele dissera que ia gostar de morrer num desastre coletivo; seria apenas uma vítima dentre tantas e não haveria luto, sofrimento, alguém que ficasse chorando o abandono.
            Ele se enganara por questão de dias. Não tivesse eu descoberto as mensagens e mentiras que camuflavam sua dupla existência, estaríamos ainda sonhando em nos transformar na reprise do lendário casal de Pompeia, encoberto por cinza tóxica durante um sono de prazer – ou pelo menos eu faria isso; sozinha, estaria fantasiando que seríamos pulverizados em simultâneo, reduzidos a sombras ou suspiros. Mas o tempo escorregou nos seus propósitos, e as coisas se anteciparam: individualmente, em absoluta solidão, fui aberta por uma faca, esmagada e estilhaçada por dentro. Que me importava uma segunda morte, midiática ou sensacionalista? Mauro havia esquecido a Bíblia sobre a mesa da cozinha, mas não senti qualquer impulso de pegá-la. O jornal também ficou ali, desordenado, com as folhas balançando como asas moles sob o peso das xícaras. Eu me aproximei da janela para observar as silhuetas miúdas que passavam na rua em frente, próxima ao parque. Na extremidade do chafariz, apesar da distância, sei que uma gárgula me sorri. Ela parece uma pedra cantando versos de dilúvio; diz que falta somente uma semana para a ausência de futuro, e – quer saber? – eu mal posso esperar pelo fim de tudo.

            Tércia Montenegro (conto publicado hoje no Vida & Arte, do jornal O Povo. Disponível também no site)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Il piccolo libro dei baci

Foto de Ferdinando Scianna (Roma, 2000)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

IX Semana de Letras da UFC

A IX Semana de Letras da UFC recebe, até 15 de dezembro, inscrições de trabalhos acadêmicos para as modalidades comunicação oral, oficina e minicurso, e de apresentações culturais para as modalidades poesia, música, teatro, dança, show de humor, artes circenses.
O evento traz o tema Letras e Perspectivas: Ensino, Pesquisa e Extensão e é uma promoção do Centro Acadêmico Patativa do Ceará, do Curso de Letras da UFC. A IX Semana de Letras acontecerá na área 1 do Centro de Humanidades, no Campus do Benfica - UFC, no período de 8 a 11 de janeiro de 2013.
Mais informações podem ser encontradas no edital ou no blog do evento ou solicitadas pelo e-mail: academica.semanadeletras2012@gmail.com.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

À espera do estético


À ESPERA DO ESTÉTICO

            Como participante do Semioce, grupo de estudos semióticos da Universidade Federal do Ceará, tenho vivido vários instantes de junção entre teoria e arte. Para mim a semiótica é a ferramenta mais satisfatória para quem deseja se aprofundar nas questões relativas à construção do fazer literário, musical, pictórico etc. Mas é claro que, enquanto disciplina que sistematiza os seus procedimentos, ela exige uma iniciação técnica – e um jornal não é espaço para a discussão de tema tão complexo. Hoje eu gostaria apenas de sugerir um ponto reflexivo, a partir do livro Da imperfeição, de Greimas. Nessa obra, o autor ensaia os modos de apreensão do sentido pelo corpo sensível e coloca o estético como possibilidade de fratura de uma rotina.
            Simplificando, poderíamos dizer que quando algo provoca essa quebra do óbvio, da mesmice em que estamos imersos, promove o arrebatamento do indivíduo. O sujeito se esquece de si, do próprio corpo com identidade e território delimitados no mundo. É arrastado bruscamente pela experiência estética – que ocorre no contato inesperado com a arte, ou mesmo com um elemento do cotidiano capaz de alcançar essa dimensão de “estranhamento”, essa suspensão do previsível. No instante encantatório, sujeito e objeto tornam-se um, fundem-se numa espécie de laço primordial.
            Há um momento no livro em que Greimas cita Baudelaire, e talvez o comentário do poeta seja decisivo à compreensão que desejamos: “o inesperado, a surpresa, o assombro, são uma parte essencial e característica da beleza” – diz o autor de Les fleurs du mal. Aqui, o conceito de beleza, ou de estético, não está agregado a nada em particular; pode existir num poema, num som ou num rosto. Importa somente que haja esse impacto, o susto de não prever nada – e, de repente, fundir-se a esse objeto de estesia, num átimo de deslumbramento. No instante seguinte, a pessoa já volta a ser quem era antes, recupera as sensações habituais e torna a pôr os pés no chão, por assim dizer. Pode ser que ainda admire a obra e até tente explicar com palavras o efeito que ela proporcionou. Mas o arrebatamento já se perdeu; o instante de união sagrado passou, porque passou a surpresa, e ela não pode ser forjada uma segunda vez.
            A experiência, que acontece como primeira e última, ou “primúltima”, como Greimas coloca, está destinada a libertar e reatar as continuidades do cotidiano. O indivíduo põe-se à espera de novos “acidentes estéticos” e, se por um lado incomoda saber que essas ocasiões são tão fortuitas, sob outra perspectiva é um consolo ter a beleza como chance súbita de êxtase, dentro de uma vida mesquinha. O fato de cada alumbramento ser tão fugaz acaba sendo um retrato de nosso próprio destino humano, igualmente perecível, mas – por que negar? – surpreendente, em tantas coisas mínimas.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no respectivo site)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Mistério



Versos do meu amigo Henrique Beltrão - um presente para o dia de hoje:

tudo é mistério:
em tudo é mister
tempo etéreo
pra (a)colher o que vier.

Portinari e Rivera

Há alguns dias fui ver, na Unifor, a exposição dos estudos para Guerra e Paz, do Portinari. Imediatamente, é claro, lembrei-me dos murais de Rivera (talvez, se me fosse possível escolher uma única imagem do mundo para eu levar para o além, eu escolhesse uma das pinturas que vi no México...). Mas a associação não foi feita apenas pela grandeza da proposta, que poderia me levar a pensar em qualquer outro muralista. Há algo mais íntimo, que liga estes dois artistas na pulsão incansável de sua obra: uma espécie de persistência ou mesmo fé na arte, como a única alternativa de ofício para a vida. No caso de Portinari, a escolha alcança laivos fatalistas, devido a sua morte causada pela intoxicação com as tintas. Mas não é preciso que se sacrifique a permanência nesta terra, em termos cronológicos, para se notar a verdadeira entrega do artista - ela está presente o tempo inteiro, e não com ares de sacrifício, como pode parecer a quem vê de fora. A entrega artística não é um esforço, uma obrigação; na verdade, talvez não seja sequer uma escolha, porque não existem opções concorrentes. A arte absorve com tamanha exclusividade, que a muito custo lembramos que estes homens foram também isso: homens, com seu universo doméstico, suas relações familiares, profissionais etc. Imagino os dois, Portinari e Rivera, impacientes com essa condição mesquinha de viver humanamente, enquanto, num mundo perfeito, poderiam ser unicamente criadores, o tempo inteiro.


domingo, 2 de dezembro de 2012

Carta de amor - da Bethânia

Agradeço à querida amiga Lívia por me apresentar esta canção-poema, celebração do amor próprio e da grandeza individual que a gente tem de recuperar. Eis a lição da mãe Bethânia (que em breve estará cantando aqui entre nós, em Fortaleza):

http://www.youtube.com/watch?v=KkbqGe_e9Jo

Carta de amor

Não mexe comigo que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só
Não mexe não
Eu tenho zumbi, besouro o chefe dos tupis
Sou tupinambá, tenho erês, caboclo boiadeiro
Mãos de cura, morubichabas, cocares, arco-íris
Zarabatanas, curares, flechas e altares.
A velocidade da luz no escuro da mata escura
O breu o silêncio a espera. Eu tenho Jesus,
Maria e José, todos os pajés em minha companhia
O menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos
O poeta me contou
Não mexe comigo que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só
Não mexe não
Não misturo, não me dobro, a rainha do mar
Anda de mãos dadas comigo, me ensina o baile
Das ondas e canta, canta, canta pra mim, é do
Ouro de oxum que é feita a armadura que guarda
Meu corpo, garante meu sangue, minha garganta
O veneno do mal não acha passagem e em meu
Coração Maria acende sua luz, e me aponta o
Caminho.
Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã,
Giro o mundo, viro, reviro, tô no recôncavo
Tô em face, vôo entre as estrelas, brinco de
Ser uma, traço o cruzeiro do sul, com a tocha
Da fogueira de João menino, rezo com as três
Marias, vou além, me recolho no esplendor das
Nebulosas, descanso nos vales, montanhas, durmo
Na forja de Ogum, mergulho no calor da lava
Dos vulcões, corpo vivo de Xangô
Não ando no breu nem ando na treva
Não ando no breu nem ando na treva
É por onde eu vou que o santo me leva
É por onde eu vou que o santo me leva
Medo não me alcança, no deserto me acho, faço
Cobra morder o rabo, escorpião vira pirilampo
Meus pés recebem bálsamos, unguento suave das
Mãos de Maria, irmã de Marta e Lázaro, no
Oásis de Bethânia.
Pensou que eu ando só, atente ao tempo num
Começa nem termina, é nunca é sempre, é tempo
De reparar na balança de nobre cobre que o rei
Equilibra, fulmina o injusto, deixa nua a justiça
Eu não provo do teu fel, eu não piso no teu chão
E pra onde você for não leva meu nome não
E pra onde você for não leva meu nome não
Onde vai, valente? você secô, seus olhos insones
Secaram, não vêm brotar a relva que cresce livre
E verde, longe da tua cegueira. Seus ouvidos se
Fecharam a qualquer música, qualquer som, nem o
Bem nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe
Você pisa na terra mas não sente, apenas pisa,
Apenas vaga sobre o planeta, já nem ouve as
Teclas do teu piano, você está tão mirrado que
Nem o diabo te ambiciona, não tem alma, você é
O oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo.
O que é teu já tá guardado
Não sou eu que vou lhe dar,
Não sou eu que vou lhe dar,
Não sou eu que vou lhe dar
Eu posso engolir você só pra cuspir depois,
Minha fome é matéria que você não alcança
Desde o leite do peito de minha mãe, até o sem
Fim dos versos, versos, versos, que brota do
Poeta em toda poesia sob a luz da lua que deita
Na palma da inspiração de Caymmi, se choro, quando
Choro e minha lágrima cai é pra regar o capim que
Alimenta a vida, chorando eu refaço as nascentes
Que você secou.
Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e
Sortilégio, vivo de cara pra o vento na chuva e
Quero me molhar. O terço de Fátima e o cordão de
Gandhi cruzam o meu peito.
Sou como a haste fina que qualquer brisa verga
Mas, nenhuma espada corta.
Não mexe comigo,que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só
Não mexe comigo,