LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O comércio do medo


O COMÉRCIO DO MEDO

Aviso a quem quiser saber que não sou ingênua e leio jornais – portanto, conheço a situação de violência que persegue nossa cidade e, por que não dizer, o mundo inteiro. Sobram casos de agressão, para quem gosta de notícias sangrentas. Mas o problema não está no indivíduo com curiosidade mórbida, que se compraz em chafurdar na angústia (embora os psiquiatras talvez digam que aí existe, sim, um problema); o grande transtorno é a comercialização do medo, expressão que já se vê no roteiro do filme Do mundo nada se leva – um clássico, sábio como todos os clássicos.
 O comércio do medo revelou-se para mim de forma nítida no dia em que fui comprar um carro. A moça da concessionária não ficou satisfeita quando apontei um veículo básico. Insistiu na necessidade de acessórios como rastreadores, travas elétricas, fumê resistente a impacto (e mostrou um vídeo com um suposto assaltante fracassando em atirar contra um carro bem preparado). Respondi que nunca tivera essas coisas e não me faziam falta, nada jamais tinha me acontecido. Então a moça pôs as mãos na cabeça: “Porque a senhora é uma abençoada de Deus! Mas e se isso muda? Sem um alarme e um bloqueador, o que a senhora vai fazer?”
Preferi pensar – e nisso não me frustrei – que continuaria sob as bênçãos divinas. Não comprei qualquer dispositivo para pânico em automóveis, e da mesma forma não aceito ofertas de seguradoras que vêm me prevenir (através de funcionários aflitos e supostamente preocupados com minha integridade) a respeito de incêndios em prédios, desastres súbitos que me arruínem a moradia ou saúde, imagine! sem um benefício financeiro para compensar os destroços.
Acho que sou crítica demais e até intolerante com esses profissionais, mas se existe uma coisa que não suporto é a manipulação pelo medo. Que o comércio seduza por artifícios enganosos, promessas de felicidade e sucesso, vá lá; a gente não se ilude, mas entende que é parte do jogo. Afinal, desde épocas remotas um vendedor exagera ou mente sobre a qualidade de um produto, para conseguir sobreviver no mercado. O que fazemos, porém, nesta época em que cercas elétricas e câmeras “de segurança” vendem muito mais do que livros ou chocolate? Eu lamento pelos escravos do receio, que dizem amém a todos os artifícios – grades, cadeados, fechaduras – que vêm limitar sua leveza de viver. Se o medo é uma reação inevitável diante de ameaças, a forma de controlá-lo não está em qualquer dispositivo ou máquina.
Lembro que, na primeira vez em que vi o mar (eu tinha dois, três anos?), soltei um grito de terror, apavorada com aquela coisa infinita e ondulante – o tipo de grito que depois as meninas só têm permissão para dar diante de baratas, ou dentro de uma história hitchcockiana. Então o adulto que estava comigo (meu pai? minha mãe?) disse, para me acalmar, que o mar não viria atrás de mim: “E você não precisa entrar nele.” Foram as palavras mágicas, que eu agora resgato. Ninguém precisa entrar no medo.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

domingo, 27 de janeiro de 2013

Rubem Grilo

Ganhando autógrafo no catálogo! Obrigada à Fádina, que clicou esta imagem e a enviou para mim.


Especialíssima a surpresa ontem, de encontrar no local da exposição (na Caixa Cutural) o próprio artista, Rubem Grilo, simpaticíssimo e - claro - por demais talentoso. Fiquei encantada com a sequência dos trabalhos, que já havia começado a ver na outra exposição, da Multiarte. Mas agora, com o acesso a algumas matrizes e um passeio pelas novas incursões, com colagens e desenhos, sinto que a arte do Grilo tornou-se ainda mais admirável! É, sem dúvida, um trabalho que não se pode deixar de conhecer - e, para quem está em Fortaleza, ficam as dicas:

Galeria Multiarte - exposição Rubem Grilo em duas dimensões (até 8 de fevereiro)
Caixa Cultural - exposição Rubem Grilo xilográfico (até 17 de fevereiro)

Alguns trabalhos dele também podem ser conferidos pelo site http://www.artepadilla.com.br/rubemgrilo/


Auscultador de pensamentos, 1999

sábado, 26 de janeiro de 2013

Ramilongas

Oba!
Hoje tem show do Vítor Ramil na Caixa Cultural!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Autobiografia do Chesterton


 Desde o ano passado que eu queria fazer essa postagem, sobre a Autobiografia do Chesterton - mas as leituras foram se sobrepondo, e o tempo escasseando... Enfim, agora encontrei uma brecha para recomendar esse livro, mesmo para quem ainda não conhece a ótima literatura policial deste inglês. É certo que a autobiografia tem algumas passagens espinhosas, com referências culturais e históricas muito específicas, mas no geral o texto é tão divertido que compensa demais! Aqui vão alguns trechos, para degustação:

"Essa foi uma excelente primeira lição, no que é também a última lição de vida: a de que, em tudo que importa, o interior é bem mais que o exterior. Estou feliz, afinal de contas, por ele [seu pai] nunca ter sido um artista. Isso poderia ter lhe dificultado que se tornasse um amador. Isso poderia ter destruído sua carreira - a sua carreira privada. Ele poderia nunca ter feito o sucesso vulgar que fez em todos os milhares de coisas que ele fazia tão bem." (pp.62-3)

"Quando ateus estúpidos vinham até mim e me explicavam que não existe nada além da matéria, eu ouvia com uma espécie de sossegado horror, de indiferença, suspeitando que não havia nada além da mente. Desde então sempre tive a impressão de que há nos materialistas e no materialismo algo de ralo e de segunda mão. O ateu me dizia tão pomposamente que ele não acreditava que existisse qualquer deus, e havia momentos em que eu não acreditava sequer que existisse algum ateu." (p.118)

"(...) nenhum homem sabe o quão otimista ele é, mesmo quando se proclama pessimista, porque ele não mediu de fato a profundidade de sua dívida para com seja lá o que o criou e o capacitou a proclamar-se qualquer coisa. Debaixo do seu nariz, por assim dizer, tem o homem uma esquecida chama ou explosão de espanto diante de nossa existência. O objetivo da vida artística e espiritual é cavar até essa submersa aurora de espanto, de modo que um homem sentado numa cadeira possa compreender subitamente que ele está realmente vivo - e então se sentir feliz." (p.121)

sábado, 19 de janeiro de 2013

Antanas Sutkus



Realmente este janeiro está fervilhando de cultura em Fortal: volto a falar de artes visuais neste blog (e isso porque não mencionei o teatro, com o ótimo A mão na face, do  Bagaceira, em cartaz no Sesc Iracema. Também estou reservando para um momento mais oportuno comentários sobre as xilos do Rubem Grilo e a peça A lição, com o Ricardo Guilherme). O encantamento deste sábado ficou por conta da visita ao espaço dos Correios (na rua Senador Alencar, 38, no Centro), para ver a exposição Antanas Sutkus - um olhar livre. Dentre todas as imagens comoventes e lindas, selecionei estas para convidar: quem ainda não foi ver, não perca essa mostra! Fica até o dia 9 de fevereiro.

P.S.: O meu grande abraço à amiga Lívia, que foi quem primeiro me falou dessas fotos. =)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Juan Diego - poesia andina

Está em cartaz, até o dia 31 de janeiro, a exposição fotográfica "Miradas", de Juan Diego Pérez Arias, no espaço cultural da Assembleia Legislativa (no 5º andar do novo prédio). Adorei conhecer as imagens deste artista que tão bem mapeia os olhares e lendas de sua terra. Fica-se com vontade de viajar imediatamente para o Equador, e não somente pela famosa Guayaquil e pelo Chimborazo, mas agora pela promessa do encanto desses vilarejos ancestrais que - eu não sabia - ainda existem com abundância.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O olhar poético




O OLHAR POÉTICO

            Para além da técnica, todo artista é dotado de uma percepção incomum – aquela que faz o escultor pressentir o objeto “guardado” na matéria bruta; a certeza que orienta o equilíbrio de cores na pintura ou indica ao fotógrafo qual cena capturada é única. Chamem de instinto, bênção ou iluminação – não importa o nome; existe essa marca que define e perpassa músicos, atores, bailarinos, poetas... A habilidade de extrair do real uma fatia de beleza que quase ninguém percebe: esse é o olhar poético, transformável e criativo. Na atual literatura cearense, a obra de Carlos Nóbrega é um dos melhores exemplos disso, e o seu mais recente título, Lápis branco (Guaratinguetá: editora Penalux), só confirma as expectativas de quem busca se abismar com bons versos.
            É assim, pela mão do poeta, que enxergamos o gato, animal feito “de dengo, pelo e preguiça”: “Talvez seja bicho de seda/ ou alma andando de quatro/ Pois pisa a Terra e não pesa/ e se evapora em um salto./ É mais mistério que fato,/ direito e avesso de grave,/ E como o mistério/ É visível, /Existe, mas é improvável.” Vemos as carnaubeiras, que “dão asteriscos verdes ao ar ido”, e sabemos que um botão de rosa se contorce, para fazer “origami de si mesmo”. O passeio pela vida, com as pequenas coisas da cidade, luzes e sombras, memórias e tristezas, vem como um sobressalto a cada página – o poeta desnovela as palavras, querendo “não doer”.
            O olhar poético se exercita na travessia entre mundo e linguagem. No caso de Carlos Nóbrega, inclusive, basta uma rápida convivência para notar em seu comportamento cotidiano essa expectativa do sublime, na atenção que dedica a seres e objetos que possa transfigurar em arte. Certa vez, num encontro com vários outros amigos, eu percebi que apenas ele observava a tatuagem de uma desconhecida sentada de costas para nós, no restaurante. O arabesco vertical, impresso entre as omoplatas, parecia a continuação de um penteado – um cabelo convertido em desenho. Carlos me apontou a cena, perguntando se eu achava que a moça tinha consciência daquele efeito estético. Disse que provavelmente não; ela fizera um rabo-de-cavalo displicente. Foi o olhar do poeta que enxergou (e criou) a metamorfose entre pelo e pele. Naquele instante, não interessava a moça, que permaneceu para sempre sem rosto ou identidade. O poeta meditava no arranjo de fios e traços, testando associações possíveis. Depois que o texto despertasse, Carlos Nóbrega devolveria um fragmento de beleza, traduzido e destilado, para que os distraídos percebessem: a arte vive no mundo, mas disfarçada.
            Após Outros poemas, Breviário, Árvore de manivelas e 8 verbetes, Carlos Nóbrega acrescenta, com Lápis branco, mais um livro à minha estante de favoritos. Nela estão as obras que me socorrem, trazendo claridade quando um dia ameaça acontecer em tom insípido.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O Cândido da BPP





Amigos,

O jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, é (junto com o Rascunho) um dos veículos mais interessantes de discussão sobre literatura em nosso país. É possível ler suas matérias on line - e nesta última edição eu tive o prazer de encontrar o meu O tempo em estado sólido na seção Estante Nacional (em ótima companhia, com Ana Miranda, Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles e outras mulheres escritoras maravilhosas). Quem quiser pode conferir em http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=309

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Crônica das caminhadas


CRÔNICA DAS CAMINHADAS

Há algumas semanas convenci-me de que realmente é um absurdo que eu more perto de uma praça e jamais a use para atividades físicas. Fazer caminhadas, além disso, pode ser um exercício sociológico, com tantos tipos que se encontram no percurso. Talvez seja até mesmo uma aula de arquitetura e ficcionalidade, se nos concentrarmos em certas casas lindas que ainda existem nessas ruas secundárias, enquanto imaginamos quem pode habitá-las, e com que manias, gostos e aparências.
Mas por hoje ficarei restrita aos caminhantes – figuras que vencem metros e metros em círculos, tão obstinadas quanto hamsters dentro de uma roda. Muita gente vai à praça com cachorrinhos farfalhantes. De vez em quando, alguém exagera, como a senhora que vi puxando uma verdadeira matilha em miniatura: quatro pequineses numa mão e, na outra, dois bassets, além de vários poodles, creio. Todos seguiam comportados no passeio – mas me deu uma angústia de pensar no instante em que um latisse, e a guia de todos passasse a se enroscar, como labirintos de elástico...
Alguns caminham em família, e as crianças levam carrinhos, skates ou velocípedes; já tentaram montar um pula-pula, mas não deu certo, por causa do vento. E por falar em vento, nesta época do ano as árvores sorteiam os premiados com frutos que descrevem trajetórias inusitadas. Não se consegue escapar, a não ser pela sorte; pode-se aderir ao cooper como estratégia, mas os projéteis de manga atingem igualmente velhinhos trêmulos ou atletas.
Existem diversas outras ameaças rondando os caminhantes; afinal, quando se está na rua, tudo pode acontecer. A maioria das pessoas, entretanto, consegue se exercitar de forma contínua, mantendo o ritmo como um mecanismo condenado à repetição. Assim, podem surgir amigos (o caminhante acenará com a mão, mas não vai parar para uma conversinha), paqueras (e quase sempre deixar de ouvir certas cantadas é melhor para a saúde – mental, inclusive) ou assaltantes (jamais rápidos o suficiente para os maratonistas). O exercício prossegue.
Nesta praça, vejo sempre as mesmas pessoas. Há um senhor rápido, que mentalmente chamo de “maestro”, por seus cabelos brancos esvoaçantes. Dondocas galopam com tênis importados, balançando seus brincos de argola. Duas garotas, a cada semana, parecem terminar novos namoros aos gritos, pelo celular, enquanto resfolegam no décimo quilômetro. Um grupo de freiras se exercita com tai chi chuan: a distância, parecem garças muito leves, com hábitos e véus brancos a esvoaçarem em desequilíbrio.
Nos últimos dias, acreditei encontrar novos visitantes – alguns, retardatários, adotavam a moda de correr usando gorros natalinos ou barbas falsas. Sei que a maioria, porém, não se tornará habitual do parque. Estamos em época de virada, com motivações utópicas ou decisões fulminantes que (como quase todas as promessas) costumam ser abandonadas após uma curtíssima experiência.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Stalker (II)

Ontem, no último dia de 2012, fui assistir a um filme com meu amigo Urik e, em meio ao burburinho do shopping, não resistimos ao impulso de tirar uma dúvida. Entramos na loja de roupas masculina Stalker, e eu perguntei à vendedora:
"Vocês têm inspiração em Tarkovski?"
E ela, depois de uma breve reflexão:
"Tem, mas tá faltando."